Mais um dia havia se passado. Exatamente o quinquagésimo quarto dia sem aparecer nenhum caso para resolver, desde que eu abri a agência particular de investigação. Não foi mole pagar aquele cursinho de detetive por correspondência, mas consegui.
Fui diplomado com louvor, apesar do ceticismo e da convicção familiar de que era mais uma ideia minha fadada ao fracasso, mas eu estava determinado.a calar a boca de todo mundo.
Com o diploma, recebi um kit de investigação composto por um distintivo, uma lupa, um gravador e um manual que explicava os macetes para iniciar o negócio e atrair os primeiros clientes. Inexperiente nos aspectos mercadológicos da profissão, segui tudo a risca: aluguei uma sala num edifício já um tanto decadente, mas o valor do aluguel era compatível com o meu orçamento. Coloquei uma placa na porta, anunciando o negócio: J. Silva – detetive particular, escrito em letras pretas sobre fundo dourado. Após comprar uma escrivaninha, um arquivo e um sofá numa loja de móveis usados, distribui panfletos pela cidade e contratei uma estagiária de segundo grau para a recepção. Contratar estagiários é um ótimo pretexto para explorar o próximo, mas eu não estava em condições de ser escrupuloso. Todavia, a menina estava ansiosa para trabalhar e aceitava o que eu podia pagar. Ana Lúcia era o nome dela, mas preferia ser chamada de Analú. Bonitinha, simpática e atenciosa, ela não demorou em mostrar que nos daríamos bem. Só tive uma certa dificuldade em convencê-la a usar sutiã e trocar a camiseta por outra de número maior. Jesus! O que as adolescentes comem hoje em dia? Seja o que for, deve estar recheado de hormônios. Quando eu tinha a idade dela, não percebia tanta exuberância, ou então era cego.
Por fim, para me garantir de qualquer mau-olhado, coloquei um saquinho de sal grosso na gaveta da escrivaninha. Eu não acredito muito nisso, mas a gente nunca sabe…
Além de nós dois, havia mais uma integrante na equipe: era Kafka, uma barata enorme e cascuda, única sobrevivente da dedetização feita no prédio no mês anterior. Manhosa, escapou de todas tentativas que fiz para livrar-me dela e acabou sendo admitida na equipe. Ainda não sei que função devo atribuir a Kafka, mas ela é uma boa ouvinte, e nunca retruca quando leva bronca. Limita-se a mexer suas antenas e olhar-me com aquele ar de superioridade de quem sabe que sobreviverá a uma guerra atômica, e eu não.
Bem, os dias se passaram e, apesar do esforço, tudo o que consegui foi investigar o paradeiro de alguns emitentes de cheque sem fundo. O que me levou a um pequeno desvio na atividade da agência: tornei-me um cobrador, o algoz de funcionários públicos relapsos, pequenos comerciantes falidos e vigaristas contumazes. Infelizmente tive que restringir essa atividade, por conta do excesso de zelo na execução das tarefas de cobranças a mim confiadas e, também, por algumas divergências com o Código de Defesa do Consumidor… De qualquer modo, essa atividade paralela não me atraía e servia apenas para pagar as contas mais urgentes. Pagar contas! Se não entrasse algum cliente nos próximos dias, esse seria o único mistério que eu teria para resolver.
Sozinho, no fim de mais um dia sem que o telefone tocasse, tornei a enfiar os boletos bancários vencidos na gaveta e comecei a preparar-me para ir embora. O dia seguinte seria melhor, esperava, já pensando em voltar a vender planos de consórcio ou me empregar como porteiro em algum condomínio. Quando peguei as chaves, alguém bateu a porta. Reprimi a intenção de chamar Analú para atender, ao lembrar que ela já tinha ido embora. Até mesmo Kafka já tinha se retirado para sua fresta favorita. Ouvi novamente a batida e distingui um ritmo já impaciente. Será que era algum cobrador? Se fosse, não deixaria de ser uma ironia, considerando as atividades a que me dediquei ultimamente. Enfim, resolvi abrir a porta e botar o importuno para correr.
Já estava de saco cheio daquele dia inútil e não seria nada mal encontrar um saco de pancadas. Abri a porta de supetão e, para minha surpresa, não encontrei nenhum cobrador com cara de fuinha. Na minha frente, uma loura espetacular me olhava com a encantadora expressão de “quero colo”. Bom… Na verdade, era isso que eu desejava ver, mas ela me fitava levemente irritada e impaciente.
— Detetive J. Silva? — Perguntou aquele monumento, com a voz ligeiramente rouca.
— Ao seu dispor. — Gaguejei, como um idiota, abrindo passagem para ela entrar.
— Tenho um caso para o senhor investigar. — Ela disse com aquela boquinha vermelha, que parecia guardar tantas promessas.
Deus é pai, pensei.
Convidei-a a sentar-se na cadeira em frente à escrivaninha, dei a volta por trás da mesa e, sem muita pressa, sentei-me. Àquela altura, eu tinha os olhos fixos em algum ponto situado entre seus graciosos olhos. Era uma tentativa de não deixar meu olhar escorregar para o decote generoso que ela ostentava. Devo dizer que eu merecia um prêmio pela fleuma que consegui exibir.
— Qual é o caso? — Perguntei de chofre, com a melhor imitação que consegui fazer de Humphrey Bogart, mas duvido que ela saiba quem ele tinha sido. Nem todos se tornam especialista em filmes antigos da sessão da tarde, como eu.
— Desconfio que meu marido anda me traindo. Quero que o senhor confirme isso, pode ser? — Disse ela num fôlego só, incluindo a pergunta. Sua linda voz rouca soava fria como o gelo, que boiava no meu Johnnie Walker, comprado de um muambeiro do Paraguai.
— Sem problema. — Respondi, após pigarrear. Não conseguia imaginar alguém traindo aquela mulher, a menos que fosse um gay enrustido, artista ou um jogador de futebol, pensei, sem muito conhecimento de causa.
Meu primeiro cliente era uma loura linda, que parecia ter saído direto de um filme noir. Era difícil manter o sangue-frio, mas não tanto pela cruzada de perna cinematográfica com que ela tão gentilmente me obsequiou, mas principalmente pelo maço de notas de 100 que pôs sobre a mesa. Eu nem lembrava mais da aparência dessas notas e torci para não serem falsas.
— Dinheiro não é problema. — Ela disse.
— Naturalmente que não. — Respondi, contendo a vontade de pegar o dinheiro e meter no bolso rapidamente, antes que ela mudasse de ideia. Definitivamente, a pobreza não tem nenhuma classe. — Preciso de todos os detalhes que a senhora possa me fornecer.
Durante a meia hora seguinte, ela relatou todos os indícios que conseguiu lembrar da suposta traição. Sua explanação era fria e objetiva, como se estivesse descrevendo algo que não lhe dissesse respeito. Ela não parecia uma mulher traída, mas quem sou eu para discordar com aquele maço de notas tremulando na minha frente, sob a ação do ventilador? Por falar nisso, ao olhar para dinheiro vi as anteninhas de Kafka aparecendo por baixo. Se ela roesse alguma daquelas notas, seria o seu último dia no emprego e, provavelmente, neste mundo. Mentalmente mandei-lhe uma ordem para permanecer longe da vista da cliente. Exceto Analu, as mulheres costumavam apresentar certa aversão por baratas e outros bichos rastejantes. Minha secretária, no entanto, parecia manter com Kafka uma relação de respeito mútuo, onde uma não cruzava o caminho da outra.
De posse de todos os dados para iniciar as investigações, despedi-me da minha gélida cliente e fui para casa. No trajeto, fiquei imaginando a cara da Analu, quando soubesse que receberia o salário atrasado. Nem eu acreditava naquilo, mas o dinheiro recebido ainda estava no meu bolso. Naquela noite mesmo comecei a seguir o marido de minha cliente.
O sujeito era professor universitário e, segundo minhas anotações, naquela noite sua aula era a última. Cheguei à faculdade e me juntei aos alunos que circulavam pelos corredores no horário em que ele seria encontrado. Minutos depois eu o vi entrando na sala e chequei seu nome com uma aluna que chegou logo depois. Agora que o conhecia, era só aguardar no carro e segui-lo depois.
Noventa minutos depois ele saiu da faculdade. Estava acompanhado de um grupo de alunos e parecia bastante animado com a conversa. Aquilo parecia uma cena inocente e pensei que tinha perdido tempo, mas resolvi esperar um pouco mais para ir embora.
Foi uma decisão acertada, pois o grupo logo se dispersou e o tal professor ficou só com uma aluna. Algo ia acontecer, afinal de contas. Para minha surpresa eles vieram em minha direção, mas felizmente passaram por mim e foram em frente, na direção de uma camionete preta, dessas que os bacanas costumam ter para atrair as periguetes. Não demorou muito para que os dois se engalfinhassem num sexo selvagem e escandaloso. Para a sorte deles, e minha também, o estacionamento estava quase deserto e só eu acompanhei o embate.
Minha cliente queria um relatório detalhado. Então fui à luta, esperando que não fosse visto a espreitar o veículo, como um pervertido qualquer. Aproximei-me um pouco mais para gravar os arrulhos dos amantes, já que não poderia fotografá-los sem flash. Uma câmera infravermelha seria o próximo item a ser incluído no meu arsenal, algum dia. Todavia, consegui fazer uma boa gravação da voz deles em juras de amor e suspiros de paixão. Aquilo era muito mais do que eu poderia dizer de minha vida amorosa atualmente, mais serena que água de poço. Senti inveja do sujeito e, também por isso, caprichei no relatório que enviaria à minha cliente pela manhã. Ao terminar o relatório, fui dormir com a sensação de que o dia seguinte seria muito estranho. Eu jamais poderia imaginar o quanto isso seria verdadeiro.
De manhã, quando abri a porta do escritório, ouvi uma voz masculina que me pareceu familiar. Torci para não ser um dos meus saudosos credores. Exceto pelo salário da Analú e da conta de luz, pretendia manter minha moratória por tempo indefinido.
Ao entrar em minha sala, dei de cara com a Analú sentada em minha cadeira. Ela estava com as longas pernas apoiadas num gaveta aberta e sorria para alguém que estava de costas para mim. Ao ver-me saltou como uma mola.
— Chefinho! — Saudou, no seu costumeiro jeito estabanado. — Temos “outro” cliente para atender hoje.
Aquelas palavras indicavam duas novidades para mim. Aparentemente tínhamos um cliente novo, mas como poderia ser “outro”, se Analú ainda não sabia da loura que havia me contratado no fim do dia anterior? Demorei a entender que ela só estava fazendo marketing. Pela manhã sou sempre um pouco lento, até a primeira xícara de café na padaria da esquina.
Após esse breve interlúdio cerebral, eu me adiantei para cumprimentar o novo cliente. Quando ele se virou para mim, tive que apelar pela velha fleuma. O sujeito que me estendia a mão, era o mesmo que havia investigado na noite anterior. O tal marido infiel da minha primeira cliente.
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