A Vingança de Jylmmar

Dias se passaram e nada daquele ardor se dissipar. A pimenta de Ãnistér era tão forte, que seus olhos marejavam só de sentir o próprio bafo, soprado em suas mãos. Jylmmar se maldisse vezes sem conta, quando provocou a ira de Ãnistér.

Ironicamente, aquilo aconteceu apenas porque ela o desdenhou, quando ele apenas queria sua atenção. No entanto, desde aquele fatídico dia, Jylmmar pensava apenas em se livrar da sensação ardente em sua boca. E de tanto matutar, ele decidiu pedir ajuda a um curandeiro, que vivia lá pro lado de ratones. Era um tal de Zé Carneiro, que tinha um engenho de farinha no meio da mata e um pequeno alambique que, dizem, produzia uma cachaça da melhor qualidade, uma preciosidade famosa em toda a região.

O que poucos sabiam, além dos nativos daquele lugarejo, é que o tal de Zé Carneiro também era mestre em  preparar poções e unguentos para os mais diversos males, desde espinhela caída, picada de cobra e até encosto de algum espírito ruim. 

Ele há de ter alguma poção que acabe com esse meu tormento”. Pensou Jylmmar. Assim, mal amanheceu, ele se pôs a caminho de Ratones. Na pior das hipóteses, teria uma boa oportunidade para degustar a cachacinha de Zé Carneiro, pensou o gaiato, que não era de perder-se em lamentações.

Depois de um dia inteiro de caminhada, Jylmmar chegou na localidade onde, tinham lhe indicado, encontraria o engenho de Zé Carneiro. Já era fim de tarde e as sombras dos Guarapuvus já principiavam a cobrir a trilha poeirenta, que se esgueirava pela mata, até o rancho do velho curandeiro.

Depois de um longo trecho em aclive, a trilha se tornou uma pirambeira cheia de raízes e pedras soltas, mas Jylmmar já conseguia ver o rancho de Zé Carneiro mais adiante, numa pequena clareira no meio da mata.

Quando se aproximou, tomou um susto. Foi surpreendido por uma figura quase fantasmagórica, segurando uma peixeira do tamanho do seu antebraço. Era o velho Zé Carneiro, que não perdia a oportunidade de se divertir. Sempre assustava os forasteiros que apareciam ali, antes de se decidir se os recebia ou os expulsava morro acima. Ocorre que o velhote era também um dos inúmeros bruxos, que habitavam o interior da Ilha de Nossa Senhora do Desterro. Por essa razão, já do seu conhecimento motivo de Jylmmar ter ido procurá-lo. Mesmo assim, como era do seu feitio, o ouviu pacientemente.

— Então, istepô, tu se meteu com Ãnistér, foi? — Disse Zé Carneiro, enquanto ria com gosto. — Tu se meteu com a bruxa da pimenta. Vai sê o diabo, pra te livrar disso.

— Mas você pode me ajudar?

O velhote nada respondeu, mas remexeu em seus potes de ervas, misturou algumas e fez uma infusão. Depois disso, pegou um garrafão de sua famosa cachaça e misturou tudo, entoando algum encanto incompreensível para Jylmmar, que assistia impassível aquela pantomima, apesar do ardor em sua boca.

— Tá pronto. — Disse Zé Carneiro. — Bebe!

— O que é isso?

— É o que tu veio procurar aqui. Vai cortá o efeito da pimenta da Ânistér. 

Meio desconfiado, Jylmmar tomou um pequeno gole. O efeito foi imediato e o ardor desapareceu.

— Deu certo! — Exclamou Jylmmar, tossindo feito um gato engasgado, depois de jogado num tanque cheio de água. — Ô cachacinha marvada. Tô curado?

— Ainda não. O ardô vai vortá. — Disse Zé Carneiro, com um sorriso velhaco. 

Mal ouvira aquilo, Jylmmar sentiu novamente o ardor em sua boca.

— O ardor voltou! — Disse infeliz.

Zé Carneiro continuou rindo, mas diante do olhar aparvalhado de Jylmmar, explicou.

— Tu bebeu pouco. Tem que sê uns treis goles, dos grandes.

Sem outra alternativa, Jylmmar tomou os três goles da mistura e, dessa última vez, não engasgou. O efeito foi imediato, para seu alívio.

— Agora tô curado? — Perguntou ele ansioso.

— Ainda não. Tem que tomá treis gole todo dia, no cair da noite, até a lua cheia aparecê no céu.

Isso só aconteceria dali a duas semanas e Jylmmar se viu pensando se o conteúdo do garrafão duraria até lá.

— Vai durá até a lua cheia chegar. — Disse Zé Carneiro, de modo casual, como se tivesse ouvido seus pensamentos.

— Aí, estarei curado?

— Enquanto tiver tomando a poção, o ardô não vai te incomodar.

— Como assim? Não estarei curado, no fim desse tratamento? — Perguntou Jylmmar, já sentindo que tinha sido tapeado.

— Ainda não. Tem mais uma coisa pra tu fazê, istepô. Na noite de Lua cheia, tu deve ficar de tocaia onde Ãnistér fica na noite de lua cheia. Quando ela estiver disprevenida, tu tasca um beijo nela.

— Tá louco? Vou ter que beijar a bruxa?

— Vai. É o único jeito de devolver o ardor da pimenta pra ela. Se não fizer isso, o ardor vorta.

Meio desconfiado do velho estar a lhe pregar uma peça, Jylmmar  ficou pensando se faria isso. Enquanto ele matutava, Zé Carneiro trouxe-lhe um cobertor.

— Para que o cobertor?

O velho apontou uma rede estendida no alpendre.

— Vai tê que pousá aqui. A escuridão esconde coisas estranhas nessa mata.

Aquela noite não foi fácil para Jylmmar. Ele sonhou com Ãnistér por tanto tempo, que acordou mais cansado do que estava, antes de deitar na rede. 

— Bom dia. — Saudou Zé Carneiro, estendendo-lhe uma caneca de café. — Como tá o ardô?

— Sumiu. Não sinto mais nada.

— Não isquece  de tomar os treis gole toda noite, até a lua cheia e, depois, fazê o resto.

— Precisa mesmo? Eu não sinto mais nada.

— Se tu quisé se livrá disso é mió fazê. É o único jeito pra devolvê o ardô pra Ãnistér, já disse.

Apesar da afirmação de Zé Carneiro, Jylmmar ainda desconfiava daquele “tratamento” final, mas prometeu cumprir a risca as recomendações

Depois, Ao vê-lo pegar a trilha, Zé Carneiro sorriu. Na verdade, ele não tinha contado tudo para Jylmmar. Certas coisas,  era melhor não saber, até que acontecesse.

Então, por duas semanas, Jylmmar tomou religiosamente os três goles da poção, até o dia que a lua cheia surgiu, numa noite estrelada. Naquela noite, ele ficou de tocaia, a esperar Ãnistér. Ela não o deixou esperar muito. Logo surgiu, com passos leves, a olhar para a lua. Sem perder tempo, o gaiato a agarrou e sapecou-lhe o tal beijo.

— Mas… Que diabo?! — Exclamou Ãnistér. — O que você fez? Minha boca tá formigando.

— Devolvi o ardor da pimenta pra você.

Não tardou para que a língua dela ficasse dormente e o rubor lhe cobrisse a face. Era o efeito da pimenta que Jylmmar lhe transmitiu no beijo. O velho curandeiro não havia mentido.

— Você me paga! — Ela disse, cuspindo a saliva, inutilmente.

— Esquece. Você perdeu! Nunca mais vou chegar perto dessa pimenta, muito menos colocá-la na boca

— Você se acha muito esperto, mas não sabe tudo. — Ela disse, com tal convicção, que ele ficou apreensivo, ao lembrar o jeito velhaco de Zé Carneiro ao se despedir. 

Com efeito, alguns dias depois, o ardor da pimenta voltou à boca de Jylmmar. Desesperado, ele procurou Ãnistér. Ao se encontrarem, sentiu o ardor aumentar e se perguntou o que ela tinha feito, mas ao olhá-la, percebeu que ela também sofria com aquele ardor. Então, quase sem se darem conta, beijaram-se com sofreguidão, até que o ardor passou, mas não de todo. De tempos em tempos, o ardor da pimenta voltava e os obrigava a repetir aquele “tratamento”. Foram tantos beijos dados, que um dia o ardor sumiu. Todavia, eles não demoraram a pôr novamente a pimenta na boca e o ardor voltou.

Compartilhar:

Anteriores

Monstros das Profundezas

Próximo

J. Silva – Detetive Particular

  1. Roseli Schutel

    Kkkkkkkkkkk Muito bom! Adorei a revanche.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén