O barulho do pote caindo se sobrepôs ao som da TV e acordou o homem de repente. Irritado, ele jogou a lata de cerveja vazia em direção à cozinha. O único jeito de aturar o tédio da vida que levava era se embebedar e dormir, mas esse processo havia sido interrompido bruscamente. A mulher estava lavando roupa na pequena área de serviço do lado de fora da casa, de modo que o responsável pelo barulho era o garoto. Aquele moleque chorão estava aprontando alguma coisa na cozinha e iria pagar por isso. Há algum tempo que procurava um pretexto qualquer para pegar aquele bostinha. O moleque parecia não ter nada mais a fazer em sua miserável existência, que não fosse atrapalhá-lo em seus planos com a irmã mais velha.

De um salto, o homem avançou para a cozinha e puxou a cinta. Encontrou o garoto tentando juntar os cacos do pote de biscoito. Ao perceber sua entrada, ele se assusta e cai para trás. Tem os olhos esbugalhados de pavor, ao perceber a cinta em suas mãos.

– Não tem para onde correr, garoto. Hoje é o seu dia. – Disse o homem ao levantar o braço, com uma expressão de ódio no olhar.

A mulher entra na cozinha no derradeiro momento, mas nada diz. Ela não quer contrariar o homem. Limita-se a olhar para ele de modo apático e inexpressivo.

– Saia daqui! – Ele grita para ela, tomado de fúria.

Tudo que a mulher consegue fazer é baixar os olhos e virar-se para sair. Se, por algum momento, pensou interceder em defesa do filho, seria difícil dizer. Seu semblante não expressava nada além de uma resignação quase bovina diante do que parecia inevitável. Contudo, ainda faltava alguém naquele pequeno drama doméstico. 

A garota não tardou em aparecer, atraída pelos gritos dele, e seus olhos faiscaram ao perceber o que estava acontecendo. 

 – O que você tá fazendo?

O homem abaixou a mão que segurava a cinta. Parecia constrangido, mas não recuou de todo na sua intenção.

– Alguém precisa educar esse moleque! – Bradou. Ele tentava manter o controle da situação, mas sabia que já tinha perdido. 

A garota passou por ele e abraçou o menino.

– Vai embora. – Ela disse com uma voz enganadoramente calma.

Ela tinha uma superioridade moral que ele não poderia enfrentar, sem arriscar perder tudo. Odiou ainda mais o garoto por isso e, em algum momento, o faria pagar caro. Sem uma alternativa que pudesse resguardar sua pretensa dignidade de chefe daquela família, ele se virou para sair.

– Você vai morrer. – Disse o menino baixinho.

O homem se voltou devagar e olhou para ele. Talvez ainda pudesse se sair bem daquela situação.

– Quem vai me matar? Você? – Perguntou com uma expressão zombeteira.

– Meu amigo disse que vai te matar. – Respondeu o garoto. Ele falou com uma convicção que surpreendeu o homem por um momento, mas ele se recompôs.

– Que amigo? Aquele que vive embaixo da sua cama e ninguém mais vê? 

O Menino não respondeu. Limitou-se a olhá-lo em desafio.

– Vá embora! – Repetiu a garota.

O homem virou-se novamente para sair e deu de cara com a mulher. Desta vez ela não abaixou os olhos. Teria ele percebido um lampejo levemente irônico naquele olhar? Estava imaginando coisas. Ela não se atreveria tanto, ele pensou. Com um sacudir de ombros saiu da cozinha, arquitetando vários modos de dar um jeito naquele moleque irritante. Há muito pensava nisso, mas ainda não havia encontrado uma maneira segura de livrar-se do garoto. Sem o olhar dele a segui-lo pela casa o tempo todo, a garota não escaparia. Ela era a única razão de ter-se aproximado da viúva. Aquela megera nunca tinha sido parte dos seus planos. Planos que sempre tinham sido muito vagos, mas que agora ele sentia que se tornavam claros em sua mente, assim como a urgência em concretizá-los.

Várias horas se passaram como se fossem minutos na mente dele. O plano logo se formou em detalhes e ele só precisou comprar o que precisava e aguardar a oportunidade para pô-lo em prática. Seria a última vez que esperaria para resolver aquilo. Estava impaciente e passou o tempo do melhor modo que conhecia: num bar, bebendo e jogando sinuca com alguns otários. A bebida lhe fez bem e, se antes ainda lhe faltasse alguma convicção, a dúvida já não existia.

Logo depois da meia-noite, ele estava diante da casa onde morava. Maldisse o estalo metálico da fechadura, apesar de ninguém ter ouvido. Entrou na casa tão silenciosamente quanto possível, mas seu coração disparado parecia fazer um barulho capaz de acordar até os demônios no inferno, mas ninguém surgiu na sala.

O quarto do garoto estava entreaberto e seria fácil entrar sem ser percebido. Cuidadosamente ele abriu o frasco de éter e embebeu o pano que trazia no bolso. Apesar de o líquido escorrer entre seus dedos, pôs mais um pouco para garantir. O plano era sequestrar o garoto, sem que se pudesse determinar o momento em que isso pudesse ter acontecido. Esse era um detalhe importante para validar o álibi que tinha. Fazê-lo desaparecer sem deixar vestígios era a parte complicada do plano, mas o garoto era pequeno. Estando ele desacordado seria fácil enfiá-lo num saco para depois jogar seu corpo no mar, atado a um peso.

Após olhar ao redor, para certificar-se de que não estava sendo observado, ele entrou no quarto e deu de cara com o garoto sentado na cama olhando para ele na penumbra. Não havia medo em seus olhos e isso o desconcertou. Parecia mesmo que o menino o estava esperando e sabia o que ele pretendia.

– Trouxe um presente para você. – Falou meio sem jeito, ao esconder as mãos atrás de si, constrangedoramente consciente do cheiro de éter que invadia o quarto. 

Esperava que o moleque estivesse dormindo. Com ele desperto, o plano era bem mais difícil de executar, mas sentia que já não podia voltar. Aquele segundo perdido na indecisão quase fez com que não percebesse o garoto levantar e enfiar-se agilmente debaixo da cama. Isso o irritou profundamente. Por que o moleque sempre teimava em contrariá-lo?

– Vem aqui, seu fedelho irritante! – Vociferou tão baixo quanto podia. – Você não vai escapar de mim, se escondendo embaixo dessa cama.

O Homem enfiou-se sob a cama, mas não encontrou o menino. Voltou-se e olhou ao redor, mas ele parecia ter desaparecido do quarto sem deixar rastro. Aquilo era bom demais, é claro. O garoto devia estar escondido em algum lugar e só precisava procurar com todo o cuidado e não fazer barulho.

De repente, sua atenção foi atraída por um leve oscilar da porta do guarda-roupa. Ela estava entreaberta, como se alguém a tivesse aberto e esquecido de fechá-la completamente. O moleque estava escondido ali. Essa constatação o fez sorrir maldosamente triunfante, embora não tivesse a menor ideia de como o moleque se enfiou naquele lugar, sem que ele tivesse visto. Isso não lhe importou. O guri não tinha como escapar e arrumou o próprio fim.

Ele puxou a porta do guarda-roupa e enfiou a mão entre as vestes penduradas. Não achou nada e já ia se voltar furioso, quando algo prendeu sua mão. Apavorado, tentou se soltar, mas foi puxado para dentro com violência. Antes da dor  chegar, ele ouviu ossos do seu braço sendo triturados e gritou horrorizado. Ainda permaneceu consciente o tempo suficiente para perceber que estava sendo devorado vivo. Depois perdeu os sentidos.

Na cama, o menino fitou a porta do guarda-roupa por um momento. Depois se virou de bruços e puxou o cobertor sobre si e adormeceu, como se nada tivesse acontecido ali.

Compartilhar: