Do livro Lilith – Noite Adentro

A última vez que estive em Amsterdã foi quando eu ainda era humana e estudava em Lisboa. Fiquei apenas alguns dias, mas lembro bem de uma festa que fui nos arredores da cidade. Aconteceu de tudo naquela noite libertina e me permiti experimentar todos os prazeres que me foram oferecidos.

Meu pai, teria certamente um ataque de apoplexia se soubesses das coisas que fiz, mas não me importei muito com essa possibilidade. De algum modo intuía que meus dias de alegre libertinagem estavam no fim, como de fato aconteceu.

Não havia, naquela época, a variedade de drogas alucinógenas que tem hoje, mas o consumo de haxixe e ópio já era razoavelmente difundido pelos mercadores do oriente. Eu já os havia experimentado em Paris, entre um cálice e outro de absinto. Então o que rolou na noite de Amsterdã já me era familiar e aproveitei o quanto pude. Hoje já não consumo drogas de forma direta. Embora aprecie o efeito de algumas delas, deixei minhas experiências com alucinógenos por conta do acaso, quando bebo sangue de alguma vítima já drogada. Isso não é uma escolha muito sábia, eu confesso. Meu metabolismo não reage bem às drogas sintéticas, dessas que rolam nas raves. O efeito é ainda pior do que o causado por bebidas destiladas. Costumo ficar muito louca e o resultado disso é imprevisível e ruim para quem, como eu, quer manter sua existência oculta aos olhos humanos. Essa é uma boa razão para evitar os alucinógenos, mas Amsterdã continuava a ser o paraíso da transgressão e eu estava pronta para meter o pé na jaca.

Com efeito, isso aconteceu alguns dias antes de eu decidir voltar para o Brasil, após o exílio que me impus. Eu a encontrei no Dampkring, um coffeeshop que oferecia haxixe da melhor qualidade e numa variedade que não era encontrada em nenhum outro lugar.  Seu nome era Ekaterina e eu a vi caminhar em minha direção Ela se aproximou lentamente, por entre a fumaça e a luz difusa e bruxuleante das velas que iluminavam o salão. Dizer que ela caminhava não reflete bem o que eu via. A garota parecia flutuar, como eu fazia, ao me elevar com o auxílio das correntes de ar ascendente. Contudo, ali não havia correntes de ar e ela tinha um aspecto sobrenatural. Sua visão era impressionante, como uma pintura renascentista. Mais tarde, eu soube que ela provinha de algum país do leste europeu.

— Olá! — Ela me saldou em um inglês com forte sotaque.

Correspondi ao seu sorriso e a convidei para sentar. Eu estava curiosa. Ela não parecia surpresa em me ver, como se estive a minha espera.

— Eu tenho visto você vir aqui ocasionalmente. — Ela explicou, após se apresentar. — Em todas as ocasiões, estava sozinha ao entrar, mas saía sempre bem acompanhada.

Aquele comentário me deixou em guarda. Eu havia ido ao Damkpring, como em outros coffeeshops, para escolher minhas presas. Felizmente eu as atraía para meu refúgio, longe dali, mas julgava ter sido suficientemente cuidadosa.

— Você estava me vigiando?

Ela riu. Tinha os dentes imaculadamente brancos. Dentes de predador.

— Não, não. Você é uma mulher que chama atenção em qualquer lugar, não sabia? — Disse, enquanto afastava a ideia com um gracioso gesto.

— Tenho uma vaga ideia disso, mas geralmente são os homens que me notam. — Respondi.

— Mulheres também, não se engane. Você é bonita o suficiente para agradar gregos e troianas. — Ela retrucou com uma expressão maliciosa estampada no olhar.

— Você também. Há algo diferente em você.

— Diferente?

— Sim, mas não consigo definir racionalmente. Eu apenas sinto que você tem algo mais, além do que vejo. Há em você alguma coisa que me atrai.

Ela pareceu gostar de minha declaração afobada e me brindou com outro sorriso encantador. Isso era um perigo. Sua tez branca emoldurava uma boca vermelha e carnuda, mas o que mais me impressionava era a força do seu olhar. Seus olhos eram castanhos escuros e refletiam a chama das velas que iluminavam o salão, como se cintilassem com luz própria. Se não fosse uma ideia absurda, eu poderia pensar que ela estava tentando me dominar. Não que isso me preocupasse, mas fiquei mais atenta. Depois de dois séculos existindo nas sombras, se adquire experiência suficiente para esperar por algum imprevisto. Mas não era esse o caso. Depois de uns poucos minutos, percebi que ela estava com o estado de consciência alterado. Provavelmente tinha exagerado no consumo de spacecakes, um bolinho recheado de maconha, que serviam ali. O efeito costumava ser devastador para os desavisados.

— O que você está bebendo? — Ela perguntou, enquanto eu imaginava o quanto de Canábis já estava em sua corrente sanguínea.

— Vésper.

— Ah! O coquetel preferido de James Bond. — Ela disse, enquanto pousava suavemente sua mão sobre a minha.

— Sério?

Ela riu de minha reação. Como era linda!

— Sim. Diz a lenda que esse coquetel foi criado pelo próprio Ian Fleming. Acho que vou querer um também. Eu simplesmente adoro essa bebida!

Eu não ouvi direito o que ela falava. Naquele momento, tudo o que eu conseguia era me concentrar na sensação que o seu toque me provocava. Ela conseguiu atiçar todos os demônios do desejo que haviam em mim.

 A noite correu suave e solta. Havia em nós um elo de cumplicidade que há muito eu não conseguia estabelecer com ninguém. Minha natureza tem dessas coisas. Sou basicamente uma criatura de hábitos solitários e gosto disso, na maioria das vezes, mas nesta noite não. Meio que tomada de surpresa, eu percebi que a queria de um modo especial, não apenas por uma noite. Essa disposição não fazia muito sentido, considerando que eu nem a conhecia minutos antes. Algum tempo depois, estávamos rindo e trocando confidências como duas adolescentes, sem contar que em cada olhar trocado entre nós, havia uma miríade de promessas e intenções que quase escapavam ao controle e da prudência. Teríamos que esperar, mas não muito.

— Eu quero você. — Disse-lhe sem muita cerimônia.

— Eu também quero você. — Ela respondeu com a voz estranhamente rouca e a língua deslizando inquieta entre os dentes.

— Tem que ser agora.

— Vou chamar um táxi. — Ela falou, enquanto procurava o celular dentro da bolsa.

Eu segurei seu braço.

— Não precisamos de táxi. Tenho um estúdio perto daqui. Vamos?

Mal conseguimos esperar o garçom fechar a conta. Saímos caminhando apressadas pelas ruas estreitas. Meu refúgio era num pequeno prédio antigo, situado a três quadras do Damkpring. Eu o escolhi por estar cercado por um muro alto na parte de trás, guarnecido por uma grade de ferro batido, com espigões pontiagudos. Isso dificultava o acesso de intrusos e me permitia deixar a janela aberta para quando eu voltasse de minhas incursões noturnas.

Ao passarmos por um canto escuro, Ekaterina me puxou e nos beijamos com sofreguidão. Eu sentia sua língua forçando meus dentes e procurando a minha. Ela gostava de tomar iniciativa e eu consenti sem hesitar. Teria sido uma caminhada rápida, se não parássemos em cada canto escuro para nos beijarmos e nos tocarmos avidamente. Enquanto isso acontecia, eu decidi que não a mataria. Eu a queria não só por uma noite, mas essa intenção logo se revelaria algo impossível de concretizar.

A noite em meu refúgio tinha sido perfeita. Tanto que permanecemos juntas e assim dormimos durante todo o dia. Ela parecia não estranhar as janelas fechadas e as pesadas cortinas que nos resguardavam da luz. Na verdade, tive a impressão de que Ekaterina apreciava isso. Quando a noite chegou, eu despertei faminta, mas decidida a ignorar a vontade de cravar minhas presas em seu pescoço. Só não tinha a menor ideia de como me conter. Já tinha tentado isso em outras ocasiões e não havia dado muito certo. A única saída era deixá-la por algum tempo para caçar na noite de Amsterdã. Com sorte, eu teria o sangue de outro humano a me saciar e ela escaparia ilesa. Naturalmente eu esperava que minha adorável amante ainda estivesse ali, quando eu voltasse.

Eu me levantei devagar, com muito cuidado. Se ela acordasse, seria o fim e eu não queria que terminasse da maneira habitual, para meus amantes ocasionais. Seria amor? Não sei. Mas não vou arriscar ceder à pieguice. Amor é algo que já não me lembro de ter sentido, desde Lorenzo. Mas ao olhar para ela, tão linda em sua nudez, sinto vontade de ficar, mas me contenho. Algo transcende a simples atração física, e não é minha sede. Maldizendo pela primeira vez minha natureza vampírica, eu saio sozinha para a noite de Amsterdã.

Uma hora se passou. Já saciada, eu voltei para o meu refúgio. Antes de chegar, me perguntei se ela ainda estaria lá e mal continha a ansiedade. No céu estrelado, a lua cheia parecia zombar de minha agonia, mas não liguei a mínima. A lua não tinha Ekaterina, eu pensei de forma arrogante. Outro engano. Ao pairar acima do sobrado, percebi que a janela estava aberta, mas tudo estava às escuras, quando me deixei deslizar pelo parapeito.

O apartamento parecia estar vazio e isso me deixava um travo amargo em minha boca. Não mais, pensei. Então, eu ouvi o rosnado atrás de mim. Tentei me virar, mas o golpe que me atirou contra a parede foi mais rápido. Quando minhas pupilas se acostumaram à escuridão, eu vi a coisa. Era uma visão dantesca, mesmo para mim. Somente depois de alguns segundos eu reconheci Ekaterina. Ocorre que ela não era completamente humana. Como não percebi? Se ela fosse uma vampira, teria sido relativamente fácil notar, pela temperatura corporal e o cheiro. Mortos-vivos são frios, exceto eu. Quanto ao seu cheiro, tudo o que eu sentia era algo que eu também exalava, o odor de uma fêmea no cio, misturado com Chanel número cinco. Talvez seu forte magnetismo animal pudesse ter me alertado, mas eu ignorei o que meu instinto me dizia. Assim, demorei a perceber que a adorável garota que havia dormido comigo era um maldito lobisomem e estava se preparando para atacar novamente. Pela boca escancarada e cheia de dentes, ela não estava me querendo do mesmo modo que antes. Por outro lado, eu não tinha a menor intenção de me tornar o Chapeuzinho Vermelho da vez.

Era a primeira vez que eu enfrentava uma besta como essa, mas sabia que ela tinha força suficiente para me ferir além da minha capacidade de regeneração. Ela poderia me matar! Não havia saída. Eu tinha que providenciar sua morte primeiro. Ekaterina estava diante da janela e isso me dava uma possibilidade de sair ilesa daquele encontro. No momento em que ela rosnava e ameaçava dar o bote, eu me antecipei e pulei sobre ela com toda a força que tinha. O impacto nos arremessou pela janela. Eu pairei no ar, mas ela não tinha a mesma habilidade e despencou de uma altura de dois andares. Não era suficiente para matá-la, mas a monstruosidade caiu sobre a grade pontiaguda de ferro batido que guarnecia o muro e ficou presa. Estava empalada.

Eu pousei diante dela, enquanto uma nuvem escura ocultou a lua cheia. A metamorfose ocorreu logo depois. Bem que poderia ter acontecido minutos antes. Ekaterina ainda estava viva, mas não seria por muito tempo. Procurei não pensar muito sobre o que ia fazer e me preparei para arrancar-lhe o coração, mas ela abriu os olhos e me fitou de um jeito que faria minha alma chorar depois, supondo que eu ainda tive uma.

— Por favor, não fale. Vou tirá-la daí e você poderá se recuperar.

— Não! Faça o que tem que fazer.

— Não! Não me peça isso, por favor.

— É preciso. Por favor, me liberte da besta.

Só então compreendi o que ela queria. Sua intenção não era realmente me atacar, mas provocar meu instinto de autodefesa.

— Você já sabia o que eu sou, não sabia? Você me usou para se matar. — Acusei ressentida. — Por isso veio até mim.

Ela conseguiu esboçar um sorriso triste e pegou minha mão.

— Não seja boba. Essa ideia me ocorreu depois, gradualmente. Não subestime os seus encantos. Ontem eu queria realmente você e me aproximei por isso. Agora faça, por favor. Antes que o brilho da lua retorne.

Eu já passei por isso antes e pensava nunca mais ser induzida a matar contra minha vontade. Matar não é ato banal para mim, como é para os humanos. Nem morrer. Morrer é como romper a crisálida e abrir as asas, mas não é menos doloroso renunciar a uma existência. Eu compreendia que Ekaterina não queria ceder à besta incrustada em sua alma. Ela não era um monstro e sofria sempre que a lua libertava sua fera, mas eu a odiei pelo que me forçava a fazer.

— Por… Favor. — Ela repetiu, num apelo quase inaudível. — Mas não beba meu sangue. Você já carrega sua maldição.

Eu nada disse. Acho que Ekaterina não compreenderia que foi minha escolha me tornar o que sou. Para mim, nunca foi uma maldição. Nisso somos diferentes. Sem mais hesitar, eu afundei meus dentes em sua jugular. Pouco me importava a maldição que ela carregava dentro de si. Naquele dia, eu não poderia prever que o sangue de Ekaterina em minhas veias e artérias, ainda salvaria minha vida.

O líquido escarlate escorria de sua jugular direto para minha boca, enquanto suas memórias preenchiam o vazio de minha escuridão. Havia nesse ato todo o amor que eu podia lhe dar. Ela me olhou uma última vez, como se compreendesse. Sorriu e expirou logo depois. Num movimento rápido, eu quebrei seu pescoço. O estalo partiu meu coração também. Há muito não sentia aquela dor. Esperava que tivesse sido a última vez, mas, no fundo da alma, eu sabia que era uma esperança vã. Nisso consistia minha verdadeira maldição. 

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