Capítulo I

Sem nuvens no céu escuro, a noite oferecia uma oportunidade única, para o chuvoso mês de março. As estrelas estavam lá, como joias brilhantes repousando no veludo escuro da Via Láctea. Talvez algo interessante acontecesse e tivesse a sorte de ter sua luneta apontada na direção certa. Mas ele não estava sozinho. A garota que o acompanhava tinha outras ideias sobre o que fazer, numa noite iluminada apenas pela luz das estrelas.

— Pô! Daniel. Até quando vai querer ficar aí, olhando para cima?

Ele olhou para ela e sorriu, ao contemplar seu belo rosto com expressão indignada. Às vezes não entendia por que Letícia lhe tinha tanto afeto, mas era grato todos os dias por isso. Sem ela, a terrível solidão que o consumia seria insuportável.

— Só mais um pouco, tá?

— Nós já estamos aqui há três horas. Você não se cansa disso?

— Pensei que você também gostasse.

— Uma vez ou outra até que é divertido. Mas você só pensa nisso. Afinal de contas, por que você tem tanto interesse em disco voador? 

Ela estava realmente aborrecida, e isso o fez perceber o quanto sua mania podia ser irritante. 

— Eu tenho esse interesse por discos voadores desde garoto. Não sei lhe dizer exatamente a razão disso, mas algo me aconteceu quando eu era criança.

As imagens surgiram em sua mente, tão nítidas quanto seriam se tudo tivesse acontecido há alguns minutos, embora certos detalhes lhe escapassem, como num sonho fugidio.

— Lembro vagamente que estava perdido em algum lugar, no meio do mato. Era final de tarde, e eu não sabia onde estava. Quando a noite chegou, fiquei apavorado e comecei a chorar. Então surgiram algumas bolas de luzes, não sei de onde. Eram coloridas e pulsavam suavemente, como se quisessem me acalmar. Aí, ouvi vozes em minha cabeça. Elas falavam que me levariam para casa, mas às vezes, acho que tudo foi apenas um sonho.

— Deve ter sido. Que coisa mais arrepiante! Agora, podemos ir embora?

— Só mais pouquinho.

— De jeito nenhum! Se você não quer ir embora, eu vou sozinha. Cansei desta besteira!

Mesmo em dúvida se estava fazendo a coisa certa, ela não cedeu e levantou-se, disposta a ir embora. Sem alternativa, Daniel fechou o tripé da luneta e saiu correndo atrás dela.

— Ei! Espere aí. — Grita inutilmente. 

— Vá para o inferno! — Grita Letícia em resposta.

Então ele percebeu que ela estava falando sério e correu para alcançá-la.

— Tá bom! Tá bom! Desculpa, vai.

Daniel não percebeu, mas Letícia suspirou aliviada por ele ceder. Mesmo assim, ela não aliviou a pressão.

— Só depois que você guardar toda essa tranqueira.

Sem ter como discutir, ele cedeu e guardou a luneta e seus apetrechos no porta-malas do carro.

— Pronto! Não vamos mais brigar, tá bem?

— Tá!

— Então entra no carro.

Já dentro do carro, eles olham para a linha do horizonte, bem onde o mar encontra o céu estrelado. Daniel pega a mão de Letícia e jura silenciosamente que jamais iria decepcioná-la outra vez. 

— Vamos embora? — Pergunta Letícia.

— Não… Ainda não. — Ele respondeu, fazendo um esforço para disfarçar a emoção.

— Hum… Para que essa boca tão grande, seu lobo?

Ele ri a puxa para si.

— Adivinha, Chapeuzinho.

— Uau!

Enquanto os jovens namorados cedem ao chamado dos seus corações, um risco luminoso corta o céu estrelado.

Aquela noite terminou bem, para o jovem casal. E foi bom ter sido. No dia seguinte, logo cedo, a mãe de Letícia acordou com a corda toda. Assim, enquanto ela preparava o café, revia as eternas questões que dona Aurora levantava sobre o seu namoro com Daniel.

— Então… Já marcaram a data? — Perguntou Dona Aurora, enquanto contava as gotas do adoçante que caiam na sua xícara.

— Que data, mãe?

— Como que data? A do seu casamento, é claro.

— Ah! Isso? Não deu tempo.

— Não deu tempo? O que vocês estavam fazendo? … Não, não me conte.

Letícia suspirou profundamente. Por mais que amasse sua mãe, Dona Aurora sempre lhe parecia difícil de aguentar no início da manhã.

— O que estávamos fazendo? Estávamos vendo estrelas… Literalmente.

— Daniel continua com aquela mania de caçar disco voador?

— Infelizmente!

— Você devia arrumar outro namorado.

— Mamãe! — Exclamou Letícia, em protesto, mesmo sabendo que não ia adiantar.

— Tô falando alguma mentira? Você vive correndo atrás de Daniel o tempo todo. E o que ele faz? Sai por aí, procurando disco voador. Tenha a santa paciência!

Dona Aurora não era do tipo que podia se conter, principalmente quando se tratava do que ela entendia ser a felicidade da filha única.

— Minha filha! Você não poderia ter se apaixonado por um homem normal? Tinha que ser aquele lunático?

— Chega, mamãe! É melhor eu ir trabalhar.

— Tá certo. Eu não falo mais nada. Você nunca me ouve, mesmo.

— Tchau.

— Vai com Deus. E vê se não bate à porta!

Apesar do aviso, Dona Aurora ouviu a porta bater fortemente no batente.

— Meu Deus! Ela faz isso desde criança e não aprende. — Disse, para si mesma, enquanto erguia a xícara, para logo afastá-la com repugnância. O café frio parecia lhe dizer que havia falado demais.

Do outro lado da cidade, o início do expediente na repartição pública onde Daniel trabalhava também não estava muito animador. Algumas pessoas conversavam em um pequeno grupo no hall de entrada, quando ele entrou. Não precisou mais que alguns segundos para ele perceber que era o assunto, mas tentou ignorar.

— Chegou o caçador de ET. — Disse Fábio, um desafeto habitual de Daniel em todas as ocasiões, no ambiente de trabalho. Mas ele não era o único que implicava com sua mania por discos voadores.

— Como é Daniel? Já conseguiu um contato de 3º grau com alguma drag queen marciana? — Provocou Andrade, um puxa-saco contumaz de Fábio. Ele o seguia como um cachorro servil.

— Para isso, eu não preciso sair desse escritório. — Disse Daniel com uma ironia fria, numa referência não muito sutil à amizade de Fábio e Andrade. 

— O que você quer dizer com isso? — Inquiriu Fábio, belicoso.

— Sim. Explique isso. — Admoestou Andrade.

O chefe da seção, que até então mantinha-se em silêncio, resolveu intervir, antes que algo mais sério acontecesse.

— Acho melhor que as meninas se acalmem, ou vou distribuir suspensão pra todo mundo.

— Eles que cuidem de suas vidinhas medíocres e me deixem em paz.

— Olha só quem fala. — Responde Fábio, de forma irônica.

— Calma, Daniel. Foi apenas uma brincadeira. — Contemporiza Prudêncio. Para ele, aquela rusga já estava indo longe demais, para um ambiente de trabalho.

— Eu não vou mais aturar provocações desses imbecis.

— Otário! — Exclama Fábio, sem desistir de provocar.

Daniel cerrou os punhos, mas Prudêncio o segura.

— Venha, Daniel. — Disse, puxando-o para sua sala.

Daniel se deixou conduzir, mas Prudêncio sabia que sua irritação continua longe de se dissipar.

— Por que eles insistem em fazer de mim o alvo de suas piadinhas idiotas? — Disse Daniel, após entrar na sala de Prudêncio.

— Ah! Não leve isso a sério. Foi apenas uma brincadeira.

— Brincadeiras frequentes que me agridem.

— Desculpe lhe falar assim, Daniel. Mas, infelizmente, você mesmo tem procurado essa situação, com essa sua obsessão por discos voadores, para não falar de outras manias estranhas.

— Minhas manias não prejudicam ninguém. Por que não me deixam em paz?

— Porque você é diferente, talvez. As pessoas têm dificuldade de aceitar qualquer comportamento que não lhes pareça “normal”.

Alguns minutos depois, mais calmo, Daniel assentiu.

— Tá certo. Bom… Até mais tarde.

— Até.

Daniel saiu da sala de Prudêncio sentindo uma imensa vontade de falar com Letícia. Precisava ouvir sua voz. Só assim conseguiria se refazer. Ele ainda não compreendia como ela conseguia fazer sua vida tão melhor do que realmente era. Parecia algo mágico.

O que Daniel não sabia, é que Letícia também precisava de colo. Quando o telefone tocou, ela sentiu um sobressalto. Irritada, tentou ignorar o toque insistente, mas acabou atendo.

— Alô?

— Oi, querida.

— Oi… O que você quer? — Ela respondeu, sem muita paciência ao ouvir sua voz, mas logo se arrependeu, consternada. Era a primeira vez que isso acontecia.

— Puxa! Cheguei a ficar com a orelha gelada. Você está bem?

— Desculpe. Estou um pouco aborrecida, hoje.

Mal acabara de falar, Letícia teve a impressão de que não estava sendo sincera em seu pedido de desculpa. Precisava pensar sobre aquilo. Não, não precisava, não. Retrucou mentalmente para si mesma. Ele que se danasse.            

— Que tal almoçarmos juntos?

— Olha Daniel… Acho que precisamos conversar, mas esse convite não chegou numa boa hora.

— Meu dia também não está sendo fácil. Eu gostaria de ver você.

— Está bem. No mesmo lugar?

— Sim. Às 12h30min, ok?

— Tá.      

— Um beijo.

— Outro. — Ela respondeu, sem prestar muita atenção.

Tudo na sua vida estava ficando sem graça. Precisava fazer alguma coisa sobre isso, mas o quê? Ela não tinha a menor ideia por onde começar.

Para os desafetos de Daniel na repartição, aquela manhã se arrastava de tal modo, que parecia não acabar. Sem nada de relevante para fazer, Fábio e Andrade se ocupavam de seu passatempo predileto: falar dele pelas costas.

Estavam tão entretidos na extenuante tarefa de tecer comentários jocosos a respeito do colega esquisito, que quase não notaram a entrada do chefe na sala.

— Alguém viu o Daniel? Perguntou Prudêncio, já com o costumeiro arquear de sobrancelhas, ao ver a ociosidade escancarada.

— Deve estar longe… Talvez no mundo da lua. — Respondeu Fábio, sempre sarcástico.

— Ou em algum lugar, onde o homem jamais esteve. — Disse Andrade, se achando muito espirituoso.

— É melhor vocês pararem com isso, antes que a coisa engrosse.

— Ora, o que você quer? O sujeito é todo esquisito, não se mistura com ninguém… — Retrucou Fábio, belicoso.

— Ainda por cima quer dar uma de gostoso! — Completou Andrade.

— Se vocês conseguissem alcançar o nível dele, talvez não tivessem essa dificuldade de relacionamento.

— Pô! Essa doeu. — Falou Andrade.

— Deixem-no em paz. Ele pode ser estranho, mas não faz mal a ninguém.

— Falando nisso…

— Lá vem bomba! — Exclama Prudêncio contrafeito.

— Esta é da boa. Lembram daquela vez em que foi apresentada a planta do novo prédio? Ele corrigiu um erro do engenheiro na frente de todo mundo.

— É verdade. Eu lembro disso. — Falou Andrade. — Como um sujeito, que tem apenas o segundo grau, pode entender de cálculo estrutural?

— Surpreendente… De fato, mas é possível. Não há nada de estranho nisso.

— Não? Então escuta essa. — Insistiu Andrade. —  Outro dia, ele estava lendo um livro. Eu fiquei curioso e perguntei qual era o título.

— E daí? Muita gente gosta de ler. Se ele não estava lendo em horário de expediente, não vejo mal nenhum nisso.

— Ele estava lendo no intervalo do almoço. A questão não é essa. O que me surpreendeu foi o tipo de leitura. Ele estava lendo um tratado de física quântica.

— Isso não tem nada de mais. — Insistiu Prudêncio, já farto daquela conversa — Muita gente aprende matemática apenas porque possui uma aptidão natural para isso. Por que não física?

— Talvez você não veja nada de estranho nisso, mas o livro era em alemão.

— Muito estranho… – Corroborou Fábio. — Agora eu lembro que, outro dia, ele me deu uma caneta quando eu estava no telefone e precisei fazer uma anotação.

— E o que tem isso?

— Eu não pedi a caneta, apenas pensei nela.

— Vocês estão com a imaginação muito fértil. Daqui a pouco vão começar a dizer que o coitado tem orelhas pontudas.

Fábio e Andrade aproveitaram a deixa para soltar uma sonora gargalhada.

— Isso é absolutamente ilógico. — Falou Fábio, entre um acesso de riso e outro.

— Não vai demorar muito para a Enterprise vir buscar o sujeito. — Retrucou Andrade. Ele não tinha como saber, mas sua frase era carregada de presságios.

Prudêncio olhou disfarçadamente para o relógio na parede. Aquela enrolação já tinha durado demais.

— Chega de conversa mole! Vão trabalhar, ou desintegro vocês.

— Perigo! — Disse Fábio, com voz metálica. — Perigo! Perigo! Alienígena hostil se aproximando.

— Recomendo uma ação evasiva. — Retrucou Andrade.

 Ambos foram para suas mesas, sob o olhar de Prudêncio. Ele sabia que não aquilo não ia adiantar, mas pelo menos conseguiu acabar com a conversa.

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