O que surge primeiro, personagens ou enredo? Depende. Não existe uma receita infalível para construir uma boa história. Algumas vezes, o enredo surge de um personagem forte, com uma jornada interessante a cumprir. Noutras ocasiões, o contrário pode acontecer, quando um enredo, ou uma ideia, exigem a criação de personagens com característica marcantes, para fazer uma história funcionar como esperado. De qualquer modo, os personagens devem ter algumas características que favoreçam a conexão do leitor/expectador com a história. Ou seja, devem ser críveis, mesmo quando se tratar de personagens de fantasia.

A verossimilhança dos personagens deve estar ancorada em conceitos culturais universais, que podem ser encontrados nos arquétipos que traduzem padrões que residem no inconsciente coletivo da humanidade. Esses arquétipos, segundo Jung, explicam a estrutura da psique humana e o modo como rege nosso olhar sobre o mundo.

Os arquétipos não devem ser entendidos como estruturas rígidas, incrustadas no inconsciente coletivo humano. São, antes, um conjunto de conceitos e ideias que podem influenciar como reagimos e nos comportamos em nossas vidas, mesmo de forma involuntária. São, sobretudo, conceitos, valores e ideias guardados por todos nós. 

Segundo Jung, a psique não nasce como uma folha em branco. Já traz, em sua origem, algo que se assemelha à herança genética, como o medo ancestral da escuridão e do desconhecido. Com efeito, a analogia com a evolução biológica guarda uma possibilidade lógica, porquanto carregamos em nossas mentes modelos de comportamento incorporados a partir do inconsciente coletivo.

Há, portanto, uma herança psicológica, que se sobrepõe à herança biológica, que guarda modelos de comportamento e personalidade. São os arquétipos, cujos conceitos englobam significados que são universais, representados pela mitologia, sonhos, pela literatura, pelo cinema e reproduzidos, também, pelas campanhas de marketing e publicidade.

Os doze arquétipos de Jung

Há, na literatura correspondente, artigos que citam até 50 arquétipos, talvez mais. Jung se refere a doze tipos, que representam aspectos fundamentais, na construção da personalidade. Em cada indivíduo, três se sobressaem, mas um será dominante e outros dois terão uma importância secundária.

  1. O Inocente

Forma o contingente de ingênuos. São os otimistas, sonhadores e esperançosos, movidos pela necessidade de pertencer e agradar.

2. O Sábio

Aquele que tem como característica ser metódico e detalhista, que usa principalmente a lógica na sua relação com o mundo, mas tem uma tendência a pensar muito e se perder em pormenores, em detrimento dos resultados.

3. O Aventureiro

É o não conformista, que não hesita em trilhar novos caminhos e está sempre inquieto e, por isso, pode estar sempre insatisfeito. O aventureiro está a procura de algo e seu temperamento irrequieto nem sempre sabe o que busca.

4. O Rebelde

De personalidade transgressora, esse arquétipo aponta aqueles indivíduos que não se enquadram facilmente em normas e tendem a fazer suas próprias regras. O tipo rebelde é, ao mesmo tempo, criador e destruidor, podendo ser responsável por rupturas e inovações, para o bem ou para o mal.

5. O Mago

Distanciado de temas mundanos, o Mago está mais ligado ao esoterismo e a compreender as leis do universo. De natureza perspicaz, não é facilmente manipulável e costuma ver além das aparências.

6. O Herói

Resoluto e abnegado, o arquétipo do herói visa o bem maior, além de si. De caráter indômito, é capaz de atos de bravura, relacionados com uma causa, uma bandeira. É uma figura sempre presente na literatura e no cinema. Seu maior desafio é lidar com o próprio ego e mantê-lo sob controle.

7. O Amante

Este arquétipo está diretamente relacionado aos aspectos sensoriais intensos, seja de caráter romântico, sensuais ou estéticos. Sua inclinação por agradar o outro pode levá-lo a anular-se e até se perder em sua identidade.

8. O Comediante

É o bobo da corte, a alma da festa. Seu temperamento extrovertido o leva a se destacar socialmente, em qualquer acontecimento, mas corre um risco constante em pautar sua vida pela superficialidade das coisas mundanas.

9. O Comum

Seu maior desejo não é de se destacar, mas de pertencer. De espírito altruísta, costuma estar disponível para ajudar e ser útil, sem pretensões que visem diretamente o benefício próprio e, nisso, reside sua maior dificuldade. Seu desafio maior é lidar com os limites que impõe para si.

10. O Prestativo

É um arquétipo que sempre considera o outro, mesmo em detrimento de seus próprios interesses. Está sempre disponível para ajudar e pode, por isso, ser invasivo, em seu afã por se tornar útil. Seu desafio maior é não se anular, frente às dores do mundo.

11. O Governante

É o líder. Carrega em si a responsabilidade por conduzir, proteger e controlar o grupo a qual pertence, em sua jornada ou no cumprimento de metas. Seus desafios consistem em manter um equilíbrio entre o exercício da liderança e a necessidade de ser flexível e delegar poderes.

12. O Criador

Está sempre na vanguarda dos acontecimentos relacionados com mudanças ou ruptura de paradigmas. Traz em si os elementos de rebeldia, sabedoria e inquietação de outros arquétipos, na busca por soluções e inovações. Perfeccionista, costuma se entediar com a mediocridade, mas tem uma tendência a inconstância e falta de comprometimento no cumprimento de metas e obrigações.

Considerações Finais

Aqui, temos que lembrar que existem ainda inúmeros arquétipos, além dos citados. O essencial é pensar que, em cada um, repousa conceitos universais, que refletem como nosso olhar vê o mundo que nos rodeia e, nisso, está o nível de credibilidade, empatia e conexão dos personagens, tanto com o enredo, quanto com o leitor/expectador.

Vale ressaltar que os arquétipos não são categorias estanques. No mundo real, ninguém é bom ou mal o tempo todo. Do mesmo modo, ninguém é gentil ou raivoso, vilão ou herói em tempo integral, salvo casos que envolvam algum tipo de psicopatia. Esse maniqueísmo, embora presente em diversas narrativas, não traduz a natureza humana em toda a sua complexidade. Em cada um de nós, subsistem uma infinidade de arquétipos, que afloram a cada momento, ao sabor de pressões diversas e de uma infinidade de circunstâncias. Cabe ao escritor, tendo em mente a sua obra e o público alvo, definir o nível de complexidade que deseja atribuir aos seus personagens, conforme o enredo definido. Para haver a conexão que permita ao leitor/expectador “entrar” na narrativa, é necessário, antes, sua identificação com os arquétipos que fundamentaram o enredo, apresentados numa lógica aceitável, ao longo do desenvolvimento do arco dramático, na trama e subtramas 

Na novela gótica, Requiescat in Pace – Crônicas da Cidade dos Mortos, optei por caraterizar o personagem central como um homem comum, suas fragilidades e contradições, frente a um contexto sobrenatural, que seria o mundo do além. Ao longo da história, o protagonista, adquiriu características de outros arquétipos e, a partir das situações que se desenrolaram, alterações sutis ocorreram em seu caráter, embora ainda prevalecesse o arquétipo do homem comum. A metamorfose do personagem ocorreu a partir da interação com personagens secundários, construídos a partir de outros arquétipos, que possuíam uma dinâmica própria e mudavam conforme se desenvolvia o enredo. Dessa forma, cada personagem teve suas nuances afloradas, as quais se desenrolavam de forma independente, mas sem perder conexão com o nexo principal da trama.

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