Quando retomou sua consciência, percebeu que estava deitado num ataúde. Tentou se mexer, mas não conseguiu.

Ainda estava sob o efeito da droga que ingerira. Ele lembrou desse detalhe e sabia que estava em seu próprio velório. Precisava esperar até que o efeito passasse, horas mais tarde. Depois que os pretensos amigos e conhecidos se fossem, ele retornaria do mundo dos mortos. Aquele bando de hipócritas, não perderia por esperar! Já os conhecia bem e não daria um níquel pelas fingidas manifestações de consternação. Que fossem todos para o inferno, inclusive seus inúmeros credores, que acorreram ao seu funeral, feitos urubus, assim que souberam.
Ao seu lado, Angelina segurava sua mão e gemia baixinho. Era um gemido quase inaudível, mas denunciado pelo chacoalhar dos ombros, em suspiros comovedoramente calculados. Que bela atriz ela havia se mostrado! Precisava lembrar de presentear-lhe com um novo colar de brilhantes. Sua mulher merecia aquele prêmio, e a porra do seguro pagaria aquela extravagância com folga. Tudo o que precisava fazer era esperar com a paciência de um defunto, ele pensou.

Alguns minutos depois, Henrique ouviu os passos. Alguém se aproximava de Angelina.

— Está tudo pronto. — Disse o recém-chegado. Era Andrade, seu sócio na empresa e, também, naquela falcatrua.

— Ótimo. — Respondeu Angelina, com um tom de voz frio, quase num murmúrio. — Não aguento mais fazer o papel de viúva inconsolável.

Aguenta, sim, meu amor. Vou te compensar por isso”. Ele pensou, enquanto tentava não pensar naquela paralisia angustiante.

— Não se preocupe. — Respondeu Andrade, com a mão insinuante em seu ombro. — Assim que acabar o velório, a funerária vai pegar o caixão e levar direto para o crematório.

Ele demorou um pouco para atinar com o significado daquela frase, mas a compreensão logo lhe veio, acompanhada de uma onda de pânico.

“Crematório? Que traição era aquela?”

— Não fale isso aqui. —  Ela disse. — Ele está paralisado, mas pode ouvir.

— E daí? O que ele vai fazer? Processar-nos?

A alegre viúva se permitiu um ligeiro sorriso em meio a uma suposta expressão que pretendia aparentar uma dor que estava longe de sentir.

Ele redobrou seus esforços para se livrar daquela rigidez, mas era inútil. A toxina que ingerira, mesmo em forma atenuada, ainda agia em seu organismo. Impotente, lhe restou apenas esperar que ouvira apenas uma piada macabra. Sim, foi isso! Andrade era um gozador, conhecido por um humor negro não muito sutil. Mas dessa vez, o sócio fora longe demais. Ele o faria pagar por todo o medo que estava sentindo.

As horas passaram e, gradativamente, o salão onde se realizava o velório ficou vazio, exceto pela viúva e o sócio. Ele tentou novamente se livrar da paralisia, mas seu corpo parecia totalmente

desconectado de sua vontade. A cada minuto que se passava, mais percebia se encaminhar para o final, que algumas horas antes ter-lhe-ia parecido inacreditável. Finalmente havia lhe veio a horrenda certeza de ter sido traído pela própria mulher e o amigo de tantos anos.

De repente ouviu som de passos novamente. Desta feita, eram várias pessoas. Aquilo não era bom sinal. Sentiu que o caixão era erguido e se movimentava pelo salão.

“Meu Deus, não! O que vão fazer comigo?” Tentou erguer-se mais uma vez, mas era um esforço inútil e ele finalmente se resignou. Ninguém lhe ouviria, de qualquer forma.

“Maldita cadela! Como não percebi isso antes? Está feliz, vagabunda? E você, judas! Aproveite bem os frutos desta traição. Ainda não sei como, mas vou encontrar um jeito de voltar”. Ele pensou, mesmo que nunca tivesse acreditado que isso fosse possível. A aproximação da morte o fizera pensar nessa possibilidade e foi com esse pensamento que acompanhou mentalmente o trajeto do seu caixão até o carro funerário e, depois pelas ruas da cidade.

Ele não saberia dizer por quanto tempo durou o trajeto do carro fúnebre, mas sentiu que fora rápido demais. Isso acabava com a esperança de algo acontecer, que pudesse impedir que chegassem ao crematório ou que, pelo menos, lhe desse tempo de se recuperar, mas nada aconteceu e ele continuava paralisado, em sua morte aparente. Era o fim de sua mesquinha existência terrena. Lamentava ter perdido tanto tempo com frivolidades e destruído seus próprios sonhos, para se tornar o homem vil que tinha sido. Esses pensamentos, permeados por uma patética tentativa de autocomiseração, logo foram afastados. Tinha sido um canalha a vida toda e era tarde demais para mudar. Não seria um covarde hipócrita em seu último momento, mas não pode evitar uma última súplica, quando o veículo parou e ele ouviu as engrenagens de um portão se abrindo. Ele queria voltar para se vingar e implorou ao diabo por isso.

Em seu delírio, o desespero o fazia ouvir coisas como uma gargalhada em meio ao ruído do portão. Teria sido uma resposta aos seus apelos? Não! Ao que parecia, nem mesmo o Belzebu queria saber dele. Pois, que se danasse o capeta e todos os traidores! O inferno seria pequeno para conter sua ira. Novamente ele ouviu a gargalhada. Desta vez, de forma nítida. O significado disso, ele não tardaria em descobrir.

Logo depois que o veículo parou, Henrique ouviu a porta traseira se abrir. Seu ataúde foi erguido e avançou, à medida que portas foram abertas e fechadas atrás de si. Logo depois, percebeu que foi colocado sobre o que parecia uma mesa.

— O que vocês estão esperando? — Perguntou Angelina, num tom impaciente.

— Aguardamos que vocês se despeçam e se retirem. — Respondeu o operador. — Não é permitida a permanência de nenhum parente neste recinto, no momento final.

— Já me despedi o suficiente. Vamos embora! — Ela disse para Andrade, que a seguiu como um cachorro obediente.

— Vocês poderão ver a soltura dos pombos da janela do átrio.

— Pombos? Que pombos?

— Soltura de pombos, em homenagem ao falecido. Faz parte do pacote que a senhora pagou, não lembra?

— Esqueça os pombos e queime logo esse estrupício. —  Retrucou ela, contendo a exasperação com muito custo.

Após a batida de porta, Henrique percebeu que se deslocava, mas não era carregado por pessoas. O movimento parecia uniforme, como… Uma esteira! Algo ia acontecer, ele pensou, antes de sentir o calor, que se elevou rapidamente. As chamas logo o alcançaram e queimaram sua carne até os ossos. Nesse processo esperou a dor, mas ela não veio. Devia ser um efeito da droga que ingerira, mas as surpresas não pararam por aí. Viu o seu corpo ser consumido pelas chamas. Logo restou apenas os ossos esbranquiçados e uma caveira, com as mandíbulas abertas, num sorriso macabro. Parecia rir de si, mas por qual motivo, não saberia dizer. Estava morto! Mas como continuava consciente?

 Em resposta à sua indagação, ele ouviu… Não, não era bem ouvir, mas uma gargalhada que ressoava em sua mente, cuja teimosia em existir ainda persistia. Ele não compreendia o que se passava, até que lembrou do seu pedido de vingança. O diabo ouviu sua prece blasfema.

— Você quer sua vingança? — Perguntou uma voz metálica, como se estivesse soando por meio de um alto-falante carcomido pelas traças.

— Sim. — Ele respondeu sem hesitar.

— Então vá! Traga-me as almas daqueles que o traíram.

A voz emudeceu e o deixou a pensar como iria para qualquer lugar, se já não tinha um corpo para se movimentar? Teria virado uma alma penada? Como se vingaria, se já não tinha existência física? Em sua situação, deixou escapar um riso nervoso, quase um lamento, que pareceu ecoar no mundo dos mortais.

— Escute! — Falou Andrade, para Angelina. — Parecia uma gargalhada… A gargalhada do Henrique.

— Fala sério! Você anda imaginando coisas, ou quer me assustar? — Angelina retrucou, com ironia, enquanto pensava se não tinha sido um erro incluí-lo no plano que levou ao assassinato do marido. 

Se livrar de Andrade não estava no plano, mas sua utilidade já não existia, já que a sociedade havia se extinguido com a morte de um dos sócios. Restava liquidar a empresa, antes que o dinheiro do seguro fosse pago. Felizmente, ela era a única beneficiária e não tinha relação jurídica com a falência, já que havia se casado com Henrique muitos anos depois da fundação da construtora e sem comunhão de bens. Esse detalhe foi uma decisão do próprio marido, para salvaguardar alguma parte do patrimônio, caso algo desse errado em seus negócios. Poderia se livrar de Andrade, sem nenhum risco. Com esse pensamento, a palavra liquidar reluziu na cabeça de Angelina com outro significado, além do fim de um negócio falido. Isso a fez sorrir levemente.

— Pare de ouvir coisas e arrume essa bagunça. — Ela ordenou, com frieza

— Eu ouvi, sim. — Respondeu Andrade, já alterado. Quem aquela cadela pensava que era?

— Então você é mais estúpido do que eu imaginava.

Enquanto isso, Henrique tentava entender como cumpriria a determinação do diabo.

— Vá! — Repetiu a voz, de algum lugar, nas profundezas. 

Ele tentou se movimentar. A princípio, com dificuldade, mas logo aprendeu que era quase como andar, embora não tivesse mais um corpo. Saiu do crematório e penetrou numa outra sala, onde um cadáver aguardava sua vez de ser incinerado. 

Ao ver o defunto teve uma sensação muito próxima do que seria uma epifania, embora ele nem soubesse o significado disso, mas já sabia o que fazer. Sem hesitar, penetrou no cadáver. Esse ato, possivelmente, poderia ter sido um grande erro. A alma do defunto ainda estava por lá, e não dava mostras de querer abandonar o corpo. O que se sucedeu, foi uma guerra de vontades. 

— Saia! — Ele ordenou para o espírito que teimava em não desencarnar. 

— Saia você! Este corpo me pertence e não quero morrer. 

— Você já morreu idiota. Não tem mais volta. 

— Quem você pensa que é, para falar comigo nesse tom? Sabe quem sou eu, por acaso?

— Não sei, nem quero saber. Vá para a luz, ou para escuridão. Tanto faz! — Disse Henrique, já exasperado.

— Não! Eu sou um general, imbecil! Já mandei torturar e matar cretinos como você, por muito menos. Eu tenho a caneta! 

Aquela discussão teria sido longa e Henrique sentia que não tinha muito tempo a perder. Tentou expulsar aquela alma renitente do corpo, mas o cretino tinha uma vontade forte, própria daqueles que foram arrogantes em vida. Todavia, esse impasse foi resolvido pelo diabo, que arrancou o espírito do tal general do corpo dele e o atirou para as profundezas. 

— Vá! — Disse o diabo, com voz soturna. — Traga-me aquelas almas amaldiçoadas, antes que se arrependam e sejam perdoados por Ele. 

— Ele quem?

— Vá! 

Então, antes que provocasse a ira do diabo, Henrique tentou fazer com que o cadáver se movimentasse. Ele fez tudo que lhe ocorria, mas não conseguiu nem abrir os olhos do seu novo corpo e o tempo estava se esgotando e se aproximava o momento da cremação. Simplesmente não havia conexão de sua mente com aquele cadáver e ele se desesperou. Por mais que tentasse, sentia-se totalmente inerte. Sentia-se? Foi aí que percebeu que sentia o contato do corpo com o fundo caixão. Logo depois, passou a sentir o cheiro da madeira envernizada. Não sabia como, mas estava funcionando. Em seguida, ele abriu os olhos. A visão era turva e ele pouco enxergou nos primeiros segundos. Depois melhorou um pouco, mas não muito. Não demorou para concluir que o desgraçado do falecido era míope. Mesmo assim, conseguiu levantar-se e, logo depois, saiu do crematório. 

Andar com aquele corpo não era uma sensação muito agradável. Henrique tinha a impressão de que o quadril logo iria se desmanchar e ele nada podia fazer para apressar-se. Andava com os passos trôpegos de um bêbado, a se equilibrar precariamente numa linha imaginária, que tremulava à sua frente. Maldisse a hora que fez aquele pedido ao diabo, ao perceber que caminhava como um morto vivo de algum filme trash

Em cada passo que dava, sentia que um pedaço ficava para trás. O corpo que ocupava estava se desfazendo na frente dos transeuntes, que se afastavam apavorados. Como se não bastasse tanta desdita, seu pé esquerdo ficou preso na grade de um bueiro. Irritado, o espírito daquele que tinha sido Henrique em vida, deu um safanão tentando livrar-se, mas só conseguiu ficar sem o pé. 

“Isso não deveria estar acontecendo, deveria?” Ele pensou. Foi o próprio diabo quem lhe deu aquele corpo. Demorou um pouco para entender, mas finalmente compreendeu que o Tinhoso lhe pregara uma peça. Afinal, não foi por coincidência que ouviu a gargalhada infernal ressoar no crânio ocupado por uma massa disforme e pútrida. Já não havia um cérebro onde sua mente se agarrasse para comandar o cadáver, mas o riso do demônio ainda podia se propagar na cachola quase vazia. 

Ao virar uma esquina, pulando feito um saci, deu de cara com um homem gordo, que o olhava de boca aberta e olhos arregalados fixos nele. Parecia contemplar próprio diabo. Talvez fosse isso mesmo, a julgar pela poça de urina que se formou nos pés do sujeito. Irritado, Henrique tentou afastá-lo do seu caminho, mas conseguiu deslocar a omoplata do cadáver que ocupava. 

— Afaste-se! — Ordenou, embora não conseguisse emitir nenhum som que fosse inteligível. 

Para seu espanto, o homem gordo fez o que ordenara. Algo deu certo naquela loucura, mas ele não tinha muito tempo. Sentiu que não demoraria muito para ficar completamente imóvel. Com uma lentidão exasperante, conseguiu se ocultar em um terreno baldio. Ali, ele sentou-se num tronco apodrecido e esperou a noite, quando tentaria se deslocar até a casa em que viveu com a vagabunda. Ela e o amigo traíra teriam uma bela surpresa, quando o vissem. De repente se deu conta de que estava em outro corpo. Nem mesmo ele se veria num espelho e, sem que fosse reconhecido, a vingança não teria nenhum sentido. 

Contudo, o dilema de Henrique logo se resolveu por si. Ao anoitecer, o corpo que ocupava enrijeceu completamente e ele perdeu a conexão com a carne putrefata. Ficou imóvel e maldisse o diabo vezes sem conta, por ser enganado mais uma vez. No auge do desespero ele se debateu e rompeu a carcaça. Afinal, era melhor ser uma alma penada, do que um zumbi. Pelo menos, já sabia como se deslocar em sua forma incorpórea. 

Ele não sabia se estaria visível para aqueles dois, mas não se importava. Deveria haver um modo de demonstrar sua presença de forma inequívoca, como nos filmes de terror que apreciara em vida. Seria um bom divertimento, antes de voltar para o inferno. 

“Lar doce lar…” Murmurou para si, antes de passar pelo portão, como se ele não existisse. “Bem… Aqui estamos nós!”  

Ao avançar pelo jardim, observou que a grama precisava ser aparada. Ela não estava cuidando de sua casa, como deveria. Mal pensou isso, teve vontade de gargalhar. Não conseguia imaginar algo mais inútil do que preocupar-se com o gramado. Estava morto! Precisava acostumar-se com isso e parar de pensar como um vivente.

Na garagem entreaberta ele viu o carro de Andrade. O maldito já invadira seu território, sem nenhuma cerimônia. Isso o desgostou mais do que qualquer outra coisa. Naquele momento, desejou ter um corpo forte o suficiente, para esganar o infeliz. 

Ainda tomado pela ira, ele entrou na casa, através da parede da sala. Ser uma alma penada tinha lá suas vantagens, mas Henrique nem percebeu isso, na ânsia por encontrar os traidores. Encontrou Andrade no seu bar. Ele preparava dois drinks

Parece que os miseráveis não esperaram muito, para celebrar o golpe que me deram!” 

Com efeito, o clima ali era de comemoração. Não guardaram nem um dia de luto, em respeito ao falecido. Isso, mais do que qualquer outra coisa, o deixou furioso. O que não deixava de surpreendê-lo. Afinal, eles o assassinaram! Para seu espanto, lamentava apenas o desrespeito implícito na celebração do golpe que lhe deram. Ele os faria pagar com suas almas. Só não sabia ainda como fazer aquilo.

Sem se conter, concentrou sua ira na garrafa de vodca que Andrade segurava. A mão dele tremeu e soltou a garrafa, que se espatifou a seus pés.

Andrade ficou olhando para os cacos no chão, sem compreender o que aconteceu. A garrafa parecia ter sido arranca de suas mãos, enquanto ele ouvia um zumbido estranho.

— O que foi isso? — Perguntou Angelina, do closet, num tom aborrecido. Algo que não escapou de ser percebido por Henrique. Ao que parecia, aquela aliança entre os traidores não era muito sólida

— Não sei… — Gaguejou Andrade. — Suponho que a garrafa escorregou.

A alma penada viu ali uma oportunidade de implantar a discórdia entre eles. Ainda não tinha um plano completo, mas era um bom começo.

Angelina saiu do closet e foi para a sala, ainda enrolada numa toalha. Inexplicavelmente irritada, ela não conseguiu escolher uma roupa que fosse do seu agrado.

Ainda gosto desse corpo.” Henrique pensou, com uma tristeza inesperada, mas conseguiu se refazer e voltou a se concentrar no plano que surgia em sua mente. 

— Recolha esses cacos e limpe a sujeira. — Disse ela, surgindo na sala. — Eu… Não disse isso, disse?

Andrade não respondeu. Estava pensando em mil maneiras de esganá-la. Não havia se tornado seu cúmplice, para ser tratado como um serviçal. Ele não tinha como saber que aquelas palavras foram ditas por Henrique, embora tenham saído da boca de Angelina.

Agora é a sua vez! Pensou Henrique, já com uma ideia clara do que pretendia fazer. Sem conseguir se conter, soltou uma gargalhada diabólica. Não lamentava mais sua morte prematura e até já se via no papel de secretário do diabo

— Você ouviu algo? — Perguntou Andrade, para Angelina.

— Não. — Respondeu ela, apática. — O que você ouviu?

— E você, além de burra, também é surda! — Gritou ele, exasperado, enquanto se imaginava torcendo o pescoço dela.

De repente, com o insulto de Andrade, Angelina ouviu, ou pensou ter ouvido algo. Era novamente a gargalhada, que parecia ser de Henrique.

— Você ouviu agora?

— Não! – Retrucou ele, de mau-humor. — Agora é você que está ouvindo coisas.

— Tem algo errado! Parecia realmente a gargalhada do Henrique.

Os dois ficaram em silêncio e apuraram os ouvidos. Nada mais escutaram, mas o medo começou a se insinuar. Ambos sabiam o que haviam feito e no que estavam envolvidos. A dúvida que se insinuava em suas mentes era se estavam preparados para lidar com aquilo que fizeram e suas consequências.

— Vocês vão me pagar! — Disse subitamente a alma penada de Henrique, com uma voz arrastada. — A vingança virá!

— Meu Deus! — Sussurrou Angelina. — Ele voltou do mundo dos mortos!

— Bobagem! Mortos não voltam. — Falou Andrade, com uma segurança que estava longe de sentir.

— Adúlteros! Traidores! — Soltou o fantasma de Henrique, caprichando na voz cavernosa. Ele parecia se divertir com aquilo, aparentemente sem se importar mais com o fato de estar morto.

— Preciso ir embora. — Disse Andrade, já desprovido de qualquer resquício de coragem.

— Não se atreva a me deixar sozinha, seu covarde!

— Por que não? A ideia de se aproveitar do golpe do seguro, para se livrar de Henrique, foi sua, esqueceu? Você planejou tudo.

— Pode ser, mas não me recordo de você resistindo a isso. — Retrucou Angelina, mordaz. — É tão culpado quanto eu. Agora aguente as consequências como um homem e não o rato que é.

— Enfrentar uma alma penada não estava nos planos. — Choramingou Andrade.

A patética figura do seu cúmplice fez Angelina suspirar. Deveria ter feito tudo sozinha, desde o princípio, como tinha planejado. Por que diabos, teve a ideia de envolver aquele palerma? Ele nem mesmo era um bom amante, como descobriu após seduzi-lo, para o envolver em seu plano.

— Não foi você mesmo que disse não acreditar na existência de fantasmas? Deve haver uma explicação para isso. — Ela disse em tom apaziguador. — Precisamos nos acalmar e descobrir o que está acontecendo, está bem?

O fraco Andrade suspirou e encolheu os ombros. Ela o havia dominado novamente e ele apreciava isso. Sentia um estranho prazer sob o domínio de Angelina.

— Está certo! — Vou limpar essa bagunça.

— Isso! Bom menino. Enquanto isso, vou buscar outra garrafa de vinho na adega. Tem um Chardonnay, que Henrique estava guardando para comemorar algo especial. Não vejo ocasião melhor que esta. 

Mal ela saiu da sala, Andrade se recompôs. Já não parecia tão submisso. Sem a sua proximidade, se pôs a questionar os motivos que tinha para manter aquela aliança espúria, cujo final era impossível prever. Era cada vez mais evidente que ela não cumpriria o que fora acordado. Tudo o que ele tinha era uma participação minoritária numa empresa falida e cheia de dívidas. Havia razões de sobra para arrepender-se do envolvimento nos planos de Angelina e não sabia como sair daquela arapuca. Como um animal acuado, pressentia o perigo e a traição que estava por vir. Quase sem pensar, guardou no bolso do paletó um pedaço de vidro que tinha a forma de uma pequena adaga.

— Aqui está! — Disse Angelina, ao voltar à sala. — Chardonnay 1936. Toda vez que olhava para essa garrafa, Henrique sempre contava a mesma história. Dizia que ela havia sido contrabandeada da França, após a invasão dos nazistas.

— Verdade?

— Não sei, mas quem se importa? Henrique era um esnobe em tempo integral. Provavelmente isso é uma grande lorota.

Eu tô te ouvindo, vadia! 

— O que você disse? — Perguntou Angelina, com os olhos arregalados.

— Eu não disse nada. Você está bem?

Angelina deu de ombros, determinada a não se deixar levar pelo medo que se insinuava em sua mente. Já começava a pensar que Andrade tinha algo a ver com aquilo. Seria ventriloquismo? Não imaginava que aquele boboca pudesse ter alguma outra habilidade, além de contar dinheiro. Determinada a fazer o que pretendia, serviu o vinho nas taças que trouxe da cozinha, e estendeu uma taça para Andrade.

— Hora de comemorar!

Ele ficou olhando para a taça, indeciso.

— O que foi? Tem medo de ser envenenado?

— Desculpe. Estou um pouco nervoso, só isso. Há coisas estranhas acontecendo, não há?

— Acredito que estamos nos deixando levar pela imaginação. Vamos trocar as taças. Você bebe a minha e eu a sua, está bem?

— Não, não precisa. Ele retruca, envergonhado.

Angelina pega a taça das mãos dele e sorri, para tranquilizá-lo. Precisava acabar logo com aquilo.

— Não se preocupe. Está tudo bem. Podemos trocar, sem problemas.

Eles brindam e levam as taças aos lábios. Andrade bebe todo o conteúdo, enquanto Angelina olha para ele fixamente.

— Não vai beber? — Ele pergunta, com um leve arcar de sobrancelha. 

— Claro. — Ela responde, enquanto sorve o conteúdo de sua taça, sem titubear. Em seguida sorri para ele. — Viu?

— Desculpe ter desconfiado.

— Não se desculpe. Você estava certo. — Ela responde, se aproximando. — Você bebeu da taça que continha o veneno. O mesmo veneno que demos para Henrique. 

— Sua cadela!

Ela o abraçou e sussurrou em seu ouvido:

— Está sentindo? Logo o seu corpo vai enrijecer e o seu coração vai parar de bater, mas você não morrerá. Ainda não… Só depois que a casa explodir e levá-lo para acertar contas com o diabo.

Sentindo que não ia demorar muito para ficar paralisado, Andrade enfia a mão no bolso do paletó e segura o caco de vidro com firmeza. Com a mão esquerda puxa Angelina pelos cabelos e corta sua garganta num único golpe. Atônita, ela tenta tapar inutilmente o ferimento com as mãos, mas entra em choque, enquanto o sangue escorre entre seus dedos.

Enquanto tenta se livrar do corpo de Angelina, que desaba sobre si, Andrade ouve novamente a gargalhada. Era Henrique, sem dúvida! O maldito Voltou para se vingar. Isso já não lhe importava, no afã de sair da casa, antes que a paralisia tomasse conta do seu corpo. Com muito custo, conseguiu chegar até a porta, mas caiu no chão. Alguns minutos depois, a cozinha irrompeu em chamas e o fogo se alastrou rapidamente pela casa.

“Onde eu estou?” Se Perguntou Angelina, mas outra voz respondeu.

“Olá, querida!” Saudou Henrique. “Bem-vinda ao outro lado.”

Então você voltou!”

Ante o olhar incrédulo de Angelina, Henrique não se conteve e riu com um prazer que há muito não sentia.

“Não voltei. Estava esperando você.”

“Então… Eu morri, mesmo?”

“Com certeza, minha cara. Você e seu amiguinho traíra são esperados pelo diabo.”

“Como assim? Isso não fazia parte do acordo.”

“Que acordo?”

“O acordo que fiz com o diabo, é claro. Eu queria me livrar de você, sem despertar suspeitas. Aí ele colocou aquele plano maluco na sua mente, mas não era para eu morrer.”

De repente, tudo se tornou claro para Henrique. O diabo o queria e tramou sua morte desde o início

“Bem, acredito que você não leu as letras miúdas do contrato. Aliás, eu também não li e aqui estamos. Parece que não se pode confiar em ninguém, nem no capeta.”

“Que coisa!”

Andrade surgiu de repente. Ainda estava atônito com a passagem para o mundo do além e parecia não acreditar na própria morte.

“Onde eu estou?” Ele perguntou, com a expressão infeliz de uma alma penada renitente.

Você está no inferno. Bem… Quase isso.”

Meu Deus!” Exclamou Andrade, apavorado.

É melhor você deixar Deus fora disso.”  Retrucou Henrique, com uma ironia ferina.

“Afinal, por que você está aqui?”  Perguntou Angelina, para Henrique.

“Fiz um acordo com o Diabo para voltar e me vingar. Dei as almas de vocês em troca”. Explicou Henrique. “Vim buscá-los!”

“Miserável!” Exclamaram Angelina e Andrade, quase em simultâneo, quando finalmente compreenderam o plano armado para semear a discórdia entre eles e induzi-los a se matarem.

De repente ouviram a gargalhada. Desta vez não era Henrique.

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