O sexagésimo terceiro dia da quarentena já havia passado. Ou seria o sexagésimo quarto? Não sei mais. Depois de algumas semanas nesse recolhimento solitário, as noites e os dias se misturaram. Meu ciclo circadiano estava todo bagunçado, perdido nos dias que viraram noites, até que o amanhecer não veio mais. Além do meu pequeno mundo, as trevas eram tudo o que havia. Lá fora, apenas o nada me espreitava da escuridão. Ninguém estava na rua, além de alguns vultos ocasionais, que se diluíam nas sombras, seguidos pelo ladrar furtivo de algum cão perdido. 

Meu pequeno mundo era isso. De tão desolado, me acostumei a pensar que eu existia em lugar nenhum e estava completamente só. Não que antes da quarentena fosse muito diferente, mas tinha agora uma sensação estranha. Eu parecia estar dissociado da realidade. Tudo se resumia a uma noite sem fim, como se o próprio tempo tivesse deixado de fluir. Contudo, eu ainda existia, como se estivesse num sonho recorrente, que lembrava um poema de Byron, onde o dia já não amanhecia e tudo era treva. Nisso consistia minha existência, há dois meses. 

Eu ainda lembro, apesar de minhas atuais condições, quando o isolamento social começou. Era uma sexta-feira e tudo convidava para o dolce far niente do fim de semana. Há meses todos sabiam da existência do coronavírus, mas nada foi feito de concreto para preparar o país. 

Parecia um dia normal, exceto pelas notícias da pandemia que se espalhava pela Europa. Por aqui, nada. Nenhuma declaração, nenhum plano de contingência para lidar com a tragédia que se aproximava de nós. Pela atitude complacente e desinteressada das autoridades, parecia que estávamos encerrados numa bolha impenetrável e nada tínhamos a ver com o que acontecia no mundo. Que se danasse a Itália e o resto da península ibérica, pareciam dizer alguns dos nossos políticos, arrotando uma sabedoria que estava longe de ser real. Era apenas uma “gripezinha”, dizia um, enquanto batia no próprio peito com o punho e chamava para si uma narrativa heroica, que desdenhava do medo que sentíamos nós, simples mortais. Nada mais distante da realidade, mas havia quem acreditasse. Acho que ele próprio acreditava nisso, assim como os insensatos que o seguiam. Agora os vejo, marchando como lêmingues para o abismo, na defesa do indefensável, enquanto muitos sucumbem ao vírus e ficam pelo caminho. Nada é dito sobre isso e tudo fica na narrativa oficial da negação. O anjo negro agia na surdina, mas nem precisava, pois ninguém se importava. Destarte, levava aqueles já marcados pelo destino sombrio da morte silenciosa e inglória, que era a sina dos rebanhos a caminho do matadouro.

 Sim, aquele dia parecia absolutamente normal, digamos assim. Uma leve brisa de outono agitava as folhas do pé de araçá e alguns frutos caíam ao chão, sob o olhar atento dos pardais e corruíras. Os passarinhos chilreavam entre tufos de ervas daninhas, do gramado malcuidado da pracinha, em frente ao condomínio. O outono tinha uma cara de verão e nada parecia ser capaz de interromper aquela tranquilidade. Essa era a sensação, quando eu ia para o trabalho, mas algo me incomodava, uma incongruência qualquer em algum canto de minha mente, que eu não conseguia definir.  

Eu nada disse para minha mulher, sobre essa sensação de desassossego que me afligia a alma, sem que eu identificasse sua natureza. Laura me conhecia e dizia que eu sempre teria um motivo para justificar o meu olhar soturno sobre o mundo. Ela não gostava do meu jeito de pensar. Dizia sempre que o trágico me atraía e isso a incomodava. 

Foi bom que eu nada tivesse falado de minhas sensações, caso contrário ela teria me culpado pelos acontecimentos que adviriam. Diria que eu tinha atraído tudo das profundezas do inferno. 

Eu tinha a convicção de que o isolamento social já deveria ter sido decretado há meses, mas essa opinião não era compartilhada por minha companheira de tantos anos. Na verdade, Laura ficava muito irritada, quando eu tocava no assunto. Ultimamente vivíamos assim e eu temia que a quarentena significasse o canto do cisne para nosso desgastado relacionamento. Apesar disso, não perdi minhas convicções e, discretamente, tomei as providências que julguei necessárias para o que eu já considerava como inevitável. Tempos difíceis adviriam, mesmo quando mais ninguém falava disso.

Quando aconteceu, eu estava preparado. É claro que eu sabia que poderia estar errado. Não perdi completamente a noção das coisas, embora eu mesmo duvidasse disso em alguns momentos. Na verdade, até torcia para que meus presságios sombrios não se concretizassem. Em razão dessa possibilidade, pensei em destinar meus estoques estratégicos para instituições de caridade, caso o pior não acontecesse. Ou, então, pelo contrário. Caso acontecesse, o pior se tornar real e eu morresse de forma precoce. Não inclui Laura nesse vaticínio sombrio porque não demorei a perceber que a possibilidade morrermos juntos era praticamente inexistente. No mesmo dia em que começou o isolamento social, ela foi embora de minha vida. Então, minha quarentena se tornou um recolhimento solitário e sujeito às crises frequentes de depressão.

Primeiro dia de quarentena. Passei muito tempo ocupado em organizar minha rotina. Tentei pensar nisso como uma boa oportunidade para realizar coisas que eu sempre adiava, como retomar à pintura ou escrever um livro. Experimentos culinários também fariam parte disso, além de faxina e eventuais trabalhos de manutenção. Parecia um bom plano, mas tudo o que fiz foi ficar conectado às redes sociais e à televisão, onde as atualizações do número de mortos se misturavam ao samba do crioulo doido perpetrado pelos políticos oportunistas e um governo em crise permanente. O Brasil, enquanto país, tinha seus próprios vírus a lhe corroer as entranhas e as perspectivas que se avizinhavam não eram boas.

O terceiro dia terminou e minha lista de atividades continuou sem nenhum item marcado como realizado. Eu fiquei acordado até a madrugada acompanhando as redes sociais e o que se desdobrava em discussões políticas nada civilizadas, em meio às bobagens costumeiras das pessoas que se autointitulavam influencers. De repente percebi que o Brasil estava polarizado entre direita e esquerda, sem que nenhum dos lados realmente entendesse do que estava falando. Eram poucos os comentários realmente lúcidos. A maioria parecia ter sido feita por cães raivosos, sem nenhuma conexão com a realidade ou possíveis referências históricas. Parecia uma mistura explosiva de insensatos com os oportunistas de plantão e, entre eles, a pequena burguesia assustada. Fico imaginando o que Gramsci diria disso, enquanto sinto que o fundo do poço nunca me pareceu tão próximo.

Eu estava assim, tomado daquela tristeza pegajosa e insistente. Tudo me desgostava, depois que Laura foi embora. Ainda teimava em não compreender o fim de nosso relacionamento, depois de tantas juras recíprocas de amor eterno. Para onde teria ido tanto amor? Eu acreditei que seria eterno. Meu coração acreditou nisso, embora já devesse ter aprendido que nada durava para sempre. 

Eu cumpria o isolamento social completamente só e, sabe Deus, quando isso ia terminar. Não era uma boa ocasião para ficar sozinho. Eu não estava bem e o mundo desabando lá fora não ajudava.  Tudo o que mais desejava era mergulhar no meu abismo pessoal, triste e repleto de autopiedade. Esse era o momento que eu não queria existir, mas eu sempre desdenhava desse sentimento depois. A verdade é que a ausência de Laura me afetava mais do que eu gostaria de admitir. Não foram poucas vezes que a procurei nas redes sociais, mas só encontrava postagens antigas, de antes de ela ir embora. Nada mais, nenhuma indireta, nenhum vestígio dela. Depois de alguns dias nessa expectativa frustrada, mandei algumas mensagens. Ela ignorou ou não percebeu, era impossível saber. Talvez simplesmente não tivesse acesso à internet. Esse era o momento de mil conjecturas de um descornado. Eu já conhecia esse roteiro e comecei a me sentir ridículo. Estava me comportando como um adolescente e isso não fazia bem para o meu maltratado ego. Que ela se danasse! Com esse pensamento, passei algum tempo ausente das redes sociais. Também evitei os sites de notícias e desliguei a TV. Briguei com o mundo, por assim dizer.

Esse recolhimento total, autoimposto, serviu para eu retomar a leitura de antigos clássicos da literatura e filosofia, uma intenção sempre adiada na correria do dia a dia. Isso me levou a resgatar a lista de atividades que eu havia feito. Ser dono do próprio tempo me fascinava. Era a oportunidade de fazer apenas o que eu queria, sem outras demandas a me pressionar. Logo percebi que o isolamento favorecia o crescimento do egocentrismo. Em outra situação, a constatação disso me incomodaria, como algo estranho à minha natureza, mas me senti perfeitamente à vontade com essa mudança em meu modo de ver o mundo. Sei que, parte de mim não aprovava, mas eu liguei o botão do “foda-se” e segui em frente.

Os dias se passaram sem que eu me desse conta. Eu tinha a sensação de estar encerrado numa bolha temporal, onde todo dia era domingo ou feriado. Já não falava com ninguém há muito tempo. Era um pouco estranho no início, mas nunca fui muito sociável, de modo que logo deixei de pensar nisso. Contudo, lembro que passei entoar um monólogo com muita frequência. Falava comigo mesmo, como um escritor lidando com vários personagens de personalidades e características distintas. Devo dizer que havia uma multidão dentro de mim. Às vezes era difícil calar tantas vozes. Felizmente, eu tinha um bom estoque de vinho e um pequeno barril de cachaça envelhecida. Isso costumava resolver. Com efeito, as vozes emudeciam, mas eu ficava bêbado quase toda noite. Felizmente comecei a trocar a noite pelo dia e, no fim, adormecia de puro cansaço. Com isso, meu consumo de bebidas alcoólicas se manteve em limites toleráveis.

Depois da primeira crise existencial, após o início da quarentena, voltei a me relacionar com o mundo pelas redes sociais. Até partilhei um sonho. Algo tão vívido, que mais parecia um desejo vindo das profundezas de uma alma torturada. Sonhei com a renúncia coletiva dos políticos que governavam o país. Nesse sonho, a própria elite engendrou um acordo para se livrar daquelas excrecências. Não era uma revolução, mas já seria um alento, se fosse real. A verdade era que eu estava entediado e predisposto a elucubrações fantasiosas.

Quase dois meses se passaram. Nesse tempo, meu estoque de iguarias e o barril de cachaça estavam no fim. Também percebi que minhas calças já não ficavam confortáveis na cintura. Isso me forçava a ficar quase o tempo todo de pijama ou calças de moletom, não que isso fosse um sacrifício. Com o passar do tempo, alguns hábitos relacionados com a aparência e higiene pessoal foram deixados um pouco de lado. Com a barba e os cabelos fora de controle, deixei de me olhar no espelho. 

Nesse ínterim, tentei voltar a escrever, mas sem muito sucesso. Sem a presença de Laura, eu perdi a motivação. Ela era minha principal fonte de inspiração e, também, minha crítica mais feroz. Nada lhe escapava, o que me forçava a alçar-me a patamares cada vez mais altos em minha técnica narrativa. Isso era exaustivo, mas, por outro lado, quando ela tirava os olhos da tela do computador e sorria, eu percebia que isso era tudo o que eu precisava para seguir em frente. Sem ela, não havia redenção para mim. Assim, era fatal que eu a procurasse nas redes sociais, antes de qualquer coisa. Contudo, isso logo se mostrou um esforço inútil. Não havia rastro dela em nenhum lugar. Até mesmo as mensagens que enviei não tinham sido lidas. Laura parecia ter me deletado de sua existência. Isso parecia quase inacreditável e demorei um tempo tentando entender o que tinha acontecido para um rompimento tão frio. Isso não parecia coisa dela. Nas outras vezes que brigamos, o rompimento só durava alguns dias. Passar mais de dois meses sem notícias dela era estranho. Razão suficiente para que eu ficasse imaginando o pior. Estávamos atravessando um período em que as mortes em decorrência da pandemia já haviam se tornado banais. Eu não precisava ser um depressivo em tempo integral para supor que algo poderia ter acontecido com ela. Assim, tomado de ansiedade e consternação, percorri as redes sociais muitas vezes, em busca de notícias dela. Mandei diversas mensagens para amigos comuns e nada. Nenhuma resposta me vinha. Ninguém me respondia. Era como se todas as pessoas que eu conhecia tivessem morrido.

As tentativas de contato por telefone também se revelaram infrutíferas. Simplesmente não havia sinal em nenhuma das linhas, mas eu permanecia conectado à internet. Se alguém quisesse falar comigo, certamente perceberia isso pelas redes sociais. Em que pese minha vocação para o trágico, tudo parecia indicar o pior. Consternado, tive quase certeza de que não veria Laura outra vez. Parte de mim morreu naquele momento. A outra parte teimava em se agarrar a uma esperança fugaz. Mesmo um depressivo convicto tinha lá seus lampejos de normalidade.

As longas noites insones se sucediam e nunca mais vi o amanhecer, mas o tempo livre não significou qualquer avanço em meus diversos projetos literários. Antes, apenas me tornavam ainda mais consciente da ausência de Laura. Eu passava as horas na internet, sem prestar muita atenção ao que fazia. 

Nas redes sociais, as conversas não iam além do trivial, despeito da tragédia dos mortos contados diariamente. Já havíamos ultrapassado alguns países da Europa, em número de infectados e de mortos. As postagens e comentários continuavam a ser um festival de irrelevâncias, pontuados aqui e ali pelas rançosas tretas dos militantes da esquerda ou direita, a repetir como papagaios os seus clichês ideológicos sem sentido. Até tentei participar de algumas discussões, mas logo percebi que as pessoas não estavam interessadas em meus comentários e, frustrado, desisti de participar. 

Lamentavelmente, meu humor depressivo se mostrou um triste vaticínio da jornada sombria que ainda me cabia cumprir. Tudo começou com o amanhecer ensolarado do dia seguinte. Sim, eu vi finalmente o alvorecer, depois muito tempo e, curiosamente, não senti vontade de abrir a porta, nem que fosse para sentir o sol em minha face. Não era por medo de contágio, como se poderia imaginar. O fato é que, depois daquele período de quarentena, eu havia me acostumado àquela clausura. Era um sentimento estranho, como de um bebê que se recusava a sair da proteção e do aconchego do útero materno.

Apesar do meu desconforto com o mundo exterior, eu vi, pela veneziana da janela entreaberta, uma pequena multidão se aglomerar em frente à minha casa. Com surpresa, vi que Laura estava entre as pessoas que olhavam curiosas em minha direção. Ela estava viva, eu pensei com um misto de alívio e azedume, por ela ignorar-me por tanto tempo. O que ela estava fazendo ali, no meio daquele povo? Por que não entrava? Minhas indagações foram interrompidas pelo barulho irritante de uma sirene de uma ambulância, que forçou a multidão se afastar e estacionou em frente ao meu portão.

Dois homens de branco saltaram do veículo e se aproximaram de Laura. Falaram alguma coisa que não pude ouvir, mas percebi um sinal de assentimento dela. Em seu rosto havia uma expressão grave e indecifrável, como se ela contivesse o que estava sentindo.

Laura veio em direção da porta, seguida pelos dois homens de branco. O barulho da chave girando na fechadura me fez ensaiar um discurso de protesto por aquele incômodo, mas ela entrou e me ignorou totalmente. Aquilo era um ultraje e eu disse isso em alto e bom som, mas não fui ouvido. Só aí percebi que havia algo errado. Eles foram direto para o meu quarto e eu os segui. 

Quando vi meu corpo, compreendi o que tinha acontecido. Eu estava atravessado na cama e tudo indicava que tinha me debatido muito, antes de tudo acabar. Então a memória da agonia final me assaltou. Eu morri sufocado, sozinho. Terrivelmente só. Então, a morte era assim? Nada me consternou mais que a solidão em meus momentos finais, mas isso era coerente com a vida que eu tinha levado. Não havia nada a lamentar, exceto pelas coisas que não fiz. Tudo o que restou foi uma crônica inacabada de uma noite sem fim.

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