Abdução em Florianópolis

Nos redutos mais tradicionais de Florianópolis, costuma-se dizer que o maior sonho do manezinho é um dia ver a ilha romper sua ligação com o continente e sair mar adentro, deixando para trás o restante do Brasil com todas as suas contradições.

E de tanto sonhar com isso, o manezinho acabou chamando a atenção dos deuses. Não sei se por generosidade ou ironia, ou ainda por um imenso tédio celestial, seu desejo um dia foi atendido. E como era vontade dos deuses, a ilha não apenas se desgarrou do continente, como também de todo o planeta.

Foi num dia quente do mês de março – Um sábado, para ser mais exato – logo depois de mais uma caótica temporada turística, que o céu da ilha escureceu. Em pleno meio-dia, o sol havia desaparecido por trás de um imenso objeto, que flutuava sereno sobre a cabeça dos atônitos ilhéus.

 — É o final dos tempos. — Bradou um pregador, de Bíblia em punho, já rouco de tanto pregar em vão, aos frequentadores dos bares do mercado público. — Arrependei-vos, patifes!

— Tásh tolo? Isso é outro apagão. Acho que a prefeitura não pagou a conta da Luzsh. — Retrucou um bêbado, já com o olhar mortiço pelos eflúvios etílicos.

— Luzsh? Mas “t’amos” no meio do dia. — Observou o engraxate, com a esperteza nata do ilhéu. — Tem uma coisa no céu.

— Mas que droga! O meu celular parou de funcionar. — Reclamou a loirinha adolescente, coçando o piercing do umbigo sem perceber o que estava acontecendo.

Mais adiante, o mesmo constatou a mulata sestrosa. Desistindo de falar com o namorado, ela maldisse e companhia telefônica e voltou para o pagode, que já rolava bastante animado no vão do mercado. Na Avenida Paulo Fontes, um grupo de curiosos olhava para o céu. Alguns transeuntes se esforçavam por ignorar os olhares erguidos, pensando que fosse alguma pegadinha. Todavia, não tardou para perceberem o inusitado acontecimento e, atônitos, também olharam para cima. E por ser um sábado, a maioria dessa multidão era de frequentadores dos bares do mercado, seguidos dos garçons brandindo as contas, convenientemente esquecidas na confusão que se formou.

Por certo, toda a ilha estava em polvorosa, mas para não corrermos o risco de nos dispersar, vamo-nos ater ao que aconteceu nas imediações do Mercado Público.

Gradativamente, uma suave luz esverdeada, projetada pelo estranho objeto, substituiu a penumbra. A claridade permitiu que a multidão pudesse enxergar mais adiante de seus narizes, e alguns se regozijaram com o que viram.

— Olha lá! As pontes sumiram. — Constatou um aposentado, que momento antes estava discutindo política no Box 32 com um destacado membro da esquerda festiva da ilha.

— Fora da ilha está escuro como breu. — Constatou Musguito, simpatizante do partidão e seu habitual parceiro de copo nessas discussões.

De repente, um facho de luz azul projetou-se do objeto e aproximou-se deles. Da luz intensa formou-se uma imagem tremulante. A imagem se firmou e, gradualmente, tornou-se uma figura sólida, de aspecto humanoide. Sua forma se assemelhava aos alienígenas descritos nos relatos dos ufólogos de plantão. De estatura mediana para os padrões humanos, ele tinha a cabeça grande e lisa. Era totalmente careca. Seus olhos negros também eram desproporcionais, desprovidos de pupilas e sobrancelhas. A boca era pequena, quase inexistente. O nariz, levemente adunco, lembraria traços semitas, se fosse possível compará-lo a um ser humano. Além do traje que envolvia todo o seu corpo, ele não usava nenhum outro tipo de proteção, demonstrando respirar oxigênio, ou o gás carbônico que emanava da multidão embasbacada.

— Saudações, terráqueos. — Disse o extraterrestre, numa voz fina e metálica. Minha missão é comunicar-lhes que esta ilha — com todos os seus habitantes — está sendo transportada para o zoológico espacial do planeta Seilah, onde ficará exposta à visitação de turistas de todos os quadrantes da Galáxia de Andrômeda.

O silêncio foi rompido e um murmúrio percorreu a multidão. Alguns, indignados, ensaiavam discurso de protesto contra aquele absurdo que feria a dignidade humana. Outros se preocupavam com o que havia ficado para trás.

— E agora? Como vou acompanhar o Big Brother?

Tinha também aqueles vislumbravam tirar alguma vantagem, com as possibilidades que adviriam daquela situação.

— Não vou mais pagar aluguel. — Disse um, que morava na ilha e o seu senhorio no continente.

— Não vou ver mais a cara da minha sogra. — Disse outro.

— Pelo menos não vai ter mais gaúchos e argentinos vindo para cá.

— Eu sou gaúcho! — Disse um sujeito, atrás do gaiato. — Algo contra, tchê?

— Si! Que tienes contra nosostros? — Falou um indignado Hermano, que estava ao seu lado.

— Ih! Foi mal. — Disse o ilhéu, recuando.

O extraterrestre levantou novamente o braço e pediu silêncio. Ia falar novamente.

— Apesar desse incômodo, asseguro-lhes que todos serão muito bem tratados. Além disso, não precisarão mais trabalhar, pois todas as suas necessidades serão supridas.

— Isso não parece de todo mal. — Sussurrou Musguito, um ocioso em tempo integral.

— E para provar que nossas intenções são pacíficas — Continuou o ET. — Vamos libertar agora aqueles que abduzimos no passado.

Novamente o facho de luz azul surgiu. Diante da multidão incrédula, figuras conhecidas, e há muito tempo, desaparecidas, começaram a surgir.

— Olha lá! Não é o Franklin Cascaes? — Perguntou o aposentado.

— Ué! Ele não tinha morrido?

— Morreu. Eu fui ao velório dele. Tava mortinho da silva. Ih! O Hassis também veio. Olha lá o Luiz Henrique e o Beto Stodieck. Que loucura!

— Aquele eu conheço. É o Seixa Neto. E o de trás é o Celso Pamplona, não acredito! Até o Rômulo Coutinho de Azevedo. Esse é médico. Eu fiz acupuntura com ele.

E assim, manezinhos ilustres, que viveram em diferentes épocas, foram aparecendo. Os últimos a surgirem foram Cruz e Souza e Victor Meireles, mas esses, ninguém reconheceu.

— Não tô entendendo. Todo esse pessoal morreu faz tempo. — Disse o aposentado.

— Não. — Respondeu uma voz fina e metálica. Sem ele perceber, o extraterrestre estava diante de si e parecia ter ouvido o que o velhote havia falado.

— Apenas foram convidados a conhecer as estrelas.

— Magnífico! — Exclamou Musguito, já se vendo em algum lugar, onde nenhum homem jamais esteve.

O extraterrestre o olhou como se o notasse pela primeira vez.

— O que significa isso tudo? — Perguntou o aposentado, refazendo-se do susto.

— Após convivermos com esses seres notáveis, decidimos levar a ilha e todos os seus habitantes para o nosso planeta. Em nenhum outro lugar do universo existem criaturas tão peculiares e interessantes.

—Todos os habitantes? — Perguntou Musguito, com uma ideia a lhe ecoar na cabeça.

— Todos os que estivessem aqui no momento da partida.

— Isso quer dizer que muitos habitantes podem ter ficado de fora. — Constatou o aposentado, sem entender onde ele queria chegar.

O ET apenas observava curioso.

— Isso quer dizer que o Bornhausen deve ter ficado de fora. — Concluiu Musguito, feliz com a ideia.

— Não ficou não. — Respondeu o aposentado. — Ele tá lá na Praia Brava, aproveitando o recesso do Congresso Nacional. Quem ficou de fora foi o Guga. Ele tá nos EUA fazendo tratamento médico.

— Perdemos o Guga e ficamos com o Bornhausen. Era bom demais para ser verdade. — Lamentou-se o coração esquerdista de Musguito.

— Mas o Amim ficou de fora, não ficou? — Perguntou o aposentado, que nutria certa antipatia pelo ex-governador, por motivos que agora não veem ao caso.

— Bem… — Começou a responder o ET, parecendo um tanto constrangido. 

— Ficou? — Reforçou Musguito, ansioso.

— Bom… Para falar a verdade… O Amim é um dos nossos. Pronto, falei!

Musguito e o aposentado iam fazer mais perguntas, mas desistiram.

— Faz sentido. — Disse o aposentado, após um momento de silêncio.

— É… Pode ser. — Concordou Musguito, relutante. Concordar com algo não fazia parte de sua atitude habitual. — “Vamu” tomar uma?

— Acho melhor. — Concordou, o aposentado, mais que depressa. Sua expressão, no entanto, indicava que algo ainda o incomodava.

— O que foi? — Perguntou Musguito, que conhecia bem as expressões do velho.

— Acabei de lembrar que tá acontecendo um congresso do partido do Amim, aqui na cidade. A cúpula do Partido tá todinha lá no Costão do Santinho.

— E daí? – Perguntou Musguito já impaciente, sob o olhar curioso do extraterrestre, que acompanhava a conversa. Atento, ele até já havia esquecido de suas funções protocolares.

— Daí que o Maluf deve ter vindo também.

— Xi! Acho que logo vamos estar de volta. — Retrucou Musguito, dando de ombros.

— Sim. Concordou o aposentado. — Aquela raposa felpuda logo vai dar um jeito de superfaturar a Via-Láctea.

— Melhor voltar para o bar.

Então, eles pediram licença ao extraterrestre e viraram-lhe as costas. Foram para o bar do Goiano, deixando-o a imaginar o que seria superfaturar a Via-Láctea.

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  1. Ana Esther Balão Pithan

    Excelente! Adorei… mas não me conformo que o Guga não estava na ilha… Prestarei mais atenção a possíveis alienígenas disfarçados… Parabéns, Gilmar!!!

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