Um conto da solidão

Após pendurar o último quadro na parede, ele olhou ao redor de si. Estava satisfeito. O apartamento não era muito grande, mas nele cabiam todos os seus sonhos e expectativas de uma nova vida. As desilusões, ele esperava, ficariam do lado de fora com os fantasmas de lembranças que deveriam ser esquecidas.

Seu novo endereço ficava no alto da Felipe Schmidt, próximo a uma igreja evangélica. Isso não queria dizer nada. Ele não era religioso, e muito menos evangélico. A menção serve apenas para situar geograficamente esta história. Importante é o apartamento que ficava defronte à janela basculante do banheiro, no edifício vizinho.

Jamais teria percebido aquilo, mas justo no momento em que havia terminado de arrumar suas coisas resolveu tomar um banho e relaxar. Mas como não relaxava nunca, logo percebeu os vidros sujos da janela do banheiro e resolveu limpá-los. Não era lá muito prendado, mas tinha que se acostumar a cuidar do apartamento sozinho. O recente acordo de divórcio não lhe permitia luxos, como contratar uma faxineira. 

O mecanismo do basculante estava duro, mas cedeu depois de algumas tentativas. Curioso, ele se ergueu nas pontas dos pés e olhou para o apartamento vizinho, situado um andar abaixo do seu. De onde estava tinha uma visão privilegiada da janela do quarto. Contemplou-o por alguns segundos e resolveu sair dali, antes que fosse pego numa situação embaraçosa. Talvez se tivesse passado de imediato do pensamento ao ato não a teria visto, mas hesitou uma fração de segundos. 

Do outro lado, uma garota entrou no quarto. Linda e graciosa, ela vestia apenas um roupão. Aproximou-se da janela e olhou em sua direção por um momento, como se o visse, mas logo se afastou. Desconcertado, ele saiu rapidamente da janela, pensando que já não tinha idade para molecagens daquele tipo. Além disso, ficar na ponta dos pés estava ficando desconfortável. 

Mas se já não tinha idade, o lado moleque ainda estava forte nele, pois logo voltou com um caixote nas mãos. Subiu no estrado improvisado e, com cuidado, olhou para a janela do quarto da vizinha. Ficou sem fôlego com o que viu. Nua, ela se contemplava no espelho. Mudava de posição e ficava imóvel, num solitário deleite ante o próprio reflexo. Após alguns minutos, a mulher vestiu uma lingerie vermelha e voltou a mirar-se no espelho. Mudou em seguida para uma preta e, depois, uma branca. Parecia ainda indecisa, mas voltou a pôr a lingerie vermelha e terminou de vestir-se. 

Para desalento de seu anônimo espectador, fechou a janela. O ato foi acompanhado de um rápido olhar em sua direção, fazendo-o pensar novamente que talvez tivesse sido percebido. Metódico, e já sem os escrúpulos anteriores, ele olhou para o relógio e memorizou a hora marcada. 

No outro dia, lá estava ele a olhar para a janela da vizinha. Ela não o fez esperar muito, e novamente o brindou com sua nudez, lânguida e sem pressa. Aquilo se repetiu por vários dias seguidos, fazendo-o concluir que ela realmente se exibia para ele. Afinal, mesmo uma mulher, não se demorava tanto para vestir-se.

Era como se um acordo tácito houvesse se estabelecido entre eles. Um jogo de sedução que ficava cada vez mais ousado e interessante. À medida que os dias passavam, ele começou a vê-la de uma forma diferente. Passou a fantasiar uma grande paixão e o momento em que se encontrariam. Mas cadê coragem? Sabia que aquela mulher era muita areia para o seu caminhão. Se o encontrasse na rua, provavelmente o olharia como se ele fosse transparente. Enxergava-se como um sujeito comum, e ela era uma deusa, ou um pequeno demônio, provocando-o com desejos que nunca seriam satisfeitos.

O tempo passava, e sempre da mesma forma. Todo dia ela lhe concedia a oportunidade de apreciar sua nudez, depois fechava a janela. E ele nada de arrumar coragem para apresentar-se e lhe falar.

Um dia ele a viu com outro homem no quarto. Desalentado, contemplou pela janela o sujeito tocá-la de todos os modos, enquanto ela parecia delirar de prazer. A sua deusa nos braços de outro homem era algo quase insuportável, mas não conseguia sair da janela. Após meia hora, que lhe pareceu uma eternidade, o homem foi embora.

Ela permaneceu na cama, nua e exausta. Depois levantou, pegou uma folha de cartolina, escreveu algo e aproximou-se da janela. Olhou em sua direção, sorriu maliciosamente e ergueu o cartaz improvisado. Ele firmou os olhos e leu o derradeiro golpe em seus devaneios românticos: “Soninha, liberal e carinhosa. Aceito cartão de crédito e cheque pré”.

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